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No deserto

Matéria da Folha de S. Paulo finalmente fez ecoar o crescimento extraordinário do gasto público no Brasil. Aqui, examinamos a questão em maior detalhe, notando, em particular, o aumento das despesas com benefícios sociais e remuneração de empregados, os maiores desde 2010
Por  Alexandre Schwartsman -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

A repórter pergunta ao velho rabino na saída do Muro das Lamentações:

“Para que rezava?”

“Peço a Deus todos os dias pela paz mundial e compreensão entre as pessoas”, responde.

“Formidável!”, diz a repórter, “E como se sente?”

O rabino suspira:

“Como se estivesse falando com uma parede…”

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Soa melhor em inglês (e, desconfio, em iídiche – que não falo), mas a sensação do rabino é uma velha conhecida, em particular quando trato da questão do gasto público no Brasil, tema em geral solenemente ignorado pela sociedade e repleto de equívocos, alguns dos quais nitidamente intencionais.

Nesse sentido, me surpreendi com matéria extensa publicada pela Folha de S. Paulo, com direito a chamada em primeira página, sobre dados do FMI acerca das finanças públicas no Brasil (e em outros países), que revelam não só a extraordinária expansão do gasto do governo em seus três níveis (federal, estadual e municipal), mas também níveis de gasto que nos colocam em posição similar à de vários países europeus.

Para falar a verdade, tive oportunidade de escrever sobre (quase) os mesmos dados há cerca de dois anos, como capítulo de um livro organizado por Affonso Pastore para o Centro de Debate de Políticas Públicas, ao qual tenho a honra de pertencer, chegando exatamente às mesmas conclusões.

Ocorre que os números apresentados pela Folha tipicamente apresentam o gasto medido como proporção do PIB, métrica em geral correta e que torna possível as comparações internacionais, como, por exemplo, o Brasil se encontrar no primeiro decil do ponto de vista de gasto público, isto é, dentre os 10% que mais gastam relativamente ao tamanho do PIB (entre países com PIB superior a US$ 50 bilhões).

Todavia, a comparação ao longo do tempo fica algo prejudicada pelo péssimo desempenho do crescimento a partir de 2013, dada a recessão que durou do segundo trimestre de 2014 ao quarto de 2016, período em que o PIB (trimestral) encolheu nada menos do que 8,1%, herança da Nova Matriz Econômica, à época saudada pelos mesmos economistas que hoje fingem não ter qualquer relação com esse desastrado experimento.

Em particular, muito embora o PIB tenha crescido pouco mais de 6% entre 2010 (quando inicio a minha série, com base nos números divulgados pelo Tesouro Nacional) e 2019, parte da expansão do gasto como proporção do PIB se deve ao fraco crescimento deste último.

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É, assim, interessante mostrar a evolução do gasto medido em reais, ajustados à inflação do período, medida pelo deflator do PIB (em frequência trimestral), conforme ilustrado pelo gráfico abaixo:


Assim, entre 2010 e 2019 o gasto total subiu de R$ 2,9 trilhões para R$ 3,5 trilhões, aumento de 21% no período, ou 2,1% ao ano. Já o gasto primário, ou seja, considerar os juros (nem, no caso, uma medida de “depreciação” do capital público) saltou de R$ 2,4 trilhões para R$ 3,0 trilhões, 23% a mais, correspondendo à expansão anual média de 2,3% ao ano.

O gráfico abaixo traz maiores detalhes sobre o comportamento do gasto primário ao longo desses nove anos, sempre medidos a preços constantes do trimestre final de 2019. Alguns padrões saltam aos olhos.

O maior aumento se observa na conta de “benefícios sociais”, que reflete, principalmente, despesas com aposentadorias e pensões (embora inclua também programas sociais como o Bolsa-Família e o Benefício de Prestação Continuada), nada menos do que R$ 408 bilhões, expansão de 4% ao ano.

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O segundo maior crescimento se refere a “remuneração de empregados”, isto é, despesas associadas a funcionários ativos (as associadas a inativos estão no grupo anterior), R$ 157 bilhões.

Para fins de comparação, as despesas com juros (que não fazem parte das primárias) se elevaram R$ 55 bilhões no período, pouco mais de um terço do aumento com a remuneração de empregados.

O pagamento bruto de juros (isto é, em considerar a receita com juros do governo) atingiu R$ 496 bilhões no ano passado. Benefícios sociais e remuneração de empregados atingiram respectivamente R$ 1,35 trilhão e R$ 977 bilhões, ou seja, 2,7x e 2,0x maiores do que a despesa com juros.

Em contrapartida, o investimento bruto (sem dedução da “depreciação”) encolheu R$ 92 bilhões entre 2010 e 2019. Tal queda não resultou, como sempre digo, da (inexistente) austeridade fiscal, mas da decisão de privilegiar os gastos acima destacados.

Se restava qualquer dúvida acerca da extraordinária expansão do gasto do governo geral no Brasil nos últimos anos, creio que os números levantados com afinco pelo Tesouro Nacional segundo a metodologia desenvolvida pelo FMI deveriam bastar para eliminá-la.

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Se é assim, por que ainda me sinto como se estivesse conversando com uma parede?

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Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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