Cautela, caldo de galinha e banho quente

Apesar de o BC enfatizar “cautela”, acredito que se trata de referência ao ritmo de corte do juro no começo de 2020
Por  Alexandre Schwartsman -
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O Banco Central, no comunicado que se seguiu à sua última reunião, bem como na ata do Copom, fez algo ousado para seus padrões. Notou que “a consolidação do cenário benigno para a inflação prospectiva deverá permitir um ajuste adicional [da taxa de juros], de igual magnitude, [isto é, 0,5 ponto percentual]”, na prática se comprometendo com a redução adicional da meta para a taxa Selic para 4,5% ao ano.

Ao mesmo tempo, porém, advertiu que “o atual estágio do ciclo econômico recomenda cautela em eventuais novos ajustes no grau de estímulo”, expressão exarada no mais castiço bancocentralês que tem gerado algum debate sobre o que esperar da política monetária em 2020.

Há quem interprete a expressão como indicação de que, depois de dezembro, o BC consideraria seu trabalho feito. Isto é, “cautela” a esta altura do campeonato significaria literalmente a interrupção no novo ciclo de afrouxamento monetário. Não é, adianto, a minha opinião.

Tentando me colocar no lugar dos diretores do BC, entendo as razões para a reintrodução do termo “cautela”. A taxa de juros, como se sabe, costuma ter efeitos defasados sobre a demanda interna e, por meio dela, sobre o nível de atividade.

Tempos atrás a comparei à experiência de tomar banho naqueles velhos chuveiros elétricos: a água vinha gelada, o que nos levava a ajustar a torneira para esquentá-la, mas, como a reação da temperatura demorava, era bastante comum “perder” a mão, tornando o simples ato de tomar banho uma aula sobre como preparar uma sopa com nossa própria carne.

As dificuldades com a sintonia fina do fluxo de água faziam a temperatura do banho oscilar de sopa para zero Kelvin. Assim, a experiência do banho, normalmente prazerosa, se transformava num festival de uivos, urros, gritos e pulos nas mais diversas direções.

Evitar algo similar no que diz respeito à gestão da política monetária é a motivação do BC, que inclui dentre os riscos a seu cenário básico “o atual grau de estímulo monetário, que atua com defasagens sobre a economia, aumenta a incerteza sobre os canais de transmissão e pode elevar a trajetória da inflação no horizonte relevante para a política monetária”.

Com as taxas reais de juros (isto é, a taxa de juros deduzida a inflação esperada) nos menores níveis da história e sem uma noção clara de como a água quente vai escorrer pelos canais de transmissão, o BC não tem condições de se comprometer com novas rodadas de estímulo monetário com três meses de antecedência (a primeira reunião de 2020 ocorre no dia 5/fevereiro, dois dias antes do meu aniversário!).

Isso, todavia, não significa que não irão ocorrer. As projeções do próprio BC indicam que a inflação em 2020 ficaria na casa de 3,6-3,7% (ou seja, 0,3-0,4 p.p. abaixo da meta de 4,0%) caso a taxa de juros fosse reduzida para 4,5% ao ano em dezembro de 2019 e lá permanecesse até o final do ano que vem.

Há, portanto, espaço para redução adicional da Selic. Se tomássemos literalmente os resultados do modelo do BC (que indica 0,25-0,30 p.p a mais de inflação para cada ponto percentual a menos da taxa de juros), leitura que não endosso, poderíamos até imaginar a Selic próxima a 3,5% no final do ciclo.

Colocando, todavia, sobre a mesa a incerteza acerca de quanta água quente já está encomendada, me parece pouco provável que o BC queira se comprometer com isto.

Nesse contexto, a menção à cautela, mais que referência quanto ao fim do ciclo de expansão monetária, parece ser indicação de que o ritmo de redução de juros será mais modesto daqui para a frente, condicionado à materialização do cenário explícito nas projeções do BC.

Em outras palavras, caso a inflação siga se comportando em linha com o que espera o BC, haverá novas rodadas de cortes na Selic, mas possivelmente ao passo de 0,25 p.p por reunião, o que deve dar ao BC condições de avaliar até que ponto seu cenário básico é o correto (ou não).

Assim, me parece bastante provável que observemos a Selic abaixo de 4,5% em 2020, possivelmente na casa de 4% ao ano já no primeiro trimestre do ano que vem.

Isto dito, não há como resistir: não faltou quem atribuísse o impedimento da presidente Dilma aos “interesses rentistas” (veja aqui, ou aqui, ou ainda aqui), em particular a manutenção de altas taxas de juros.

Seu silêncio frente aos menores juros da história só é menos ensurdecedor do que a falta de explicação para a monumental falha de previsão sobre o crescimento virtuoso que magicamente adviria do dólar a R$ 4,00, que teimosamente se recusa a aparecer.

Esperemos a explicação, mas em algum lugar confortável, porque vai demorar…

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Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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