Grande renúncia, modelo híbrido, cultura tóxica, burnout: consultor de gestão fala, em entrevista exclusiva, sobre o futuro do trabalho

“A pandemia mudou a forma como nos relacionamos com o trabalho”, diz Alexandre Pellaes, ex-CEO da HRTech 99jobs e consultor de gestão

Mariana Amaro

(Foto: Divulgação)

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Até o começo de 2020, o teletrabalho parecia algo distante da maioria dos profissionais no Brasil. Com a chegada da pandemia, as companhias foram obrigadas a buscar alternativas para continuar funcionando e muitas delas adotaram trabalho remoto, inclusive contratando profissionais em outras cidades ou até países.

Agora, com o fim das restrições e necessidade de uso de máscara, a retomada ao trabalho presencial tem acontecido, também, de maneira brusca. O impasse: depois da pandemia, 78% dos brasileiros passaram a buscar por medidas de flexibilidade no trabalho e a falta de flexibilidade fez com que 30% dos trabalhadores pedisse demissão no último ano. A informação é da nova pesquisa do LinkedIn.

E mais: quem busca por vagas que ofereçam flexibilidade relata, entre outros, como principais motivos, a melhora na saúde mental e o entendimento que a empresa tem confiança no trabalho sendo feito.

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Para Alexandre Pellaes, ex-CEO da 99jobs, consultor de gestão e mestre em psicologia do trabalho pela USP, “a verdade é que estamos em um grande laboratório”.

Ele conversou com InfoMoney sobre o movimento da Grande Resignação, modelos de gestão híbrida e o futuro do trabalho. Confira:

O movimento da Grande Renúncia, (Great Resignation, em inglês) começou quando e por quê?

Esse termo, Great Resignation começou a ser usado nos Estados Unidos por causa do altíssimo nível de pessoas pedindo demissão. Foram mais de 4 milhões de demissões em um único mês.

Esse fenômeno não está acontecendo apenas lá. Existem quatro grandes motivos para essa onda de pedidos de demissão: 1) cultura tóxica das companhias; 2) insegurança dentro da organização; 3) excesso de pressão; e 4) falta de reconhecimento profissional.

Mas tudo isso está associado ao momento atípico que vivemos. A pandemia mudou a forma como nos relacionamos com o trabalho.

Em 2020, quem estava trabalhando infeliz em uma empresa com cultura tóxica precisou se segurar e tolerar. Conforme o tempo foi passando e as medidas de isolamento foram reduzidas, para muitos profissionais foi um momento de epifania, de pensar “eu estou perdendo tempo da minha vida aqui”.

Os outros três pontos que você mencionou (insegurança, excesso de pressão e falta de reconhecimento) estão associados a este momento também? De que forma?

Sim, completamente. A crise não foi apenas sanitária. Durante a pandemia, muitas empresas entraram em crise, o mercado mudou e ainda está em transformação. Todas essas mudanças geram uma insegurança para quem faz parte dessas organizações.

O excesso de pressão tem a mesma raiz. O discurso nas corporações é que “precisamos mudar, nos reinventar, criar coisas novas imediatamente”. É tudo para ontem. E isso leva ao quarto ponto, de falta de reconhecimento profissional. Porque ao mesmo tempo em que existe o estresse e a pressão por inovar, os funcionários não estão sendo reconhecidos. É quando começa a surgir aquela frase: “eu não ganho para isso”.

Esses quatro elementos formam uma espécie de quarteto fantástico que pode levar um grande número de colaboradores a pedir para sair.

Essa onda de demissões voluntárias será suficiente para modificar políticas como do Goldman Sachs, que historicamente demitiram cerca de 5% da sua força de trabalho classificada com as menores notas em avaliações de desempenho? O que as companhias vão fazer para “segurar” seus talentos?

Uma coisa importante para observar é que as empresas até podem achar que mudaram – ou tentaram – mas não mudaram tanto assim. O que realmente se transformou nesse período foi a compreensão das pessoas sobre o que é o trabalho, qual é a troca, qual é o limite.

Uma pesquisa da consultoria Gartner mostrou que ter flexibilidade no trabalho impactaria a decisão de permanecer no trabalho ou não para 55% dos profissionais. Entre os profissionais de TI esse percentual vai para 65%.

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Qual seria o modelo ideal de trabalho no futuro?

Não existe uma resposta certa, mas as pessoas estão menos propensas a se resignar.

No desenvolvimento desse futuro do trabalho, enxergo três grandes focos mudanças: 1) ligada ao significado do trabalho, esse ampliar de consciência; 2) no papel de liderança, deixando de ser cargo e virando a construção de relações –.neste ponto, há um grande desafio, porque aprendemos a liderar no atacado e isso não funciona mais –; e 3) a própria organização, suas práticas, seus processos e suas políticas.

Depois de passar por uma experiência de teletrabalho, as pessoas entenderam que perdiam grande parte do seu dia no transporte. Por mais que uma pessoa goste do trabalho e do escritório, é impossível que ela não pense em achar um trabalho mais perto da sua casa ou que permita o home office.

Novos formatos de trabalho podem surgir dessas reflexões. Por exemplo: se a organização faz questão de um trabalho presencial, não faria sentido trocar o horário de trabalho para ficar fora do pico ou ainda reduzir de oito horas de trabalho para seis, para que o tempo passado no trânsito esteja contido na jornada de trabalho?

Considerando que estamos em um cenário de taxa de desemprego a dois dígitos, esse formato não estaria muito distante da maioria dos brasileiros?

Da maioria, sim. Mas, mesmo em menor medida, estamos vivendo essa experiência aqui. Não temos um estudo tão amplo sobre as razões de pedidos de demissão no Brasil, mas os dados do Caged mostram essa movimentação por cargo, pelo indicador do código de carteira de trabalho. Temos 500.000 pessoas pedindo demissão por mês aqui.

Os motivos para as demissões voluntárias são os mesmos e uma cultura tóxica é o principal motivo. Uma cultura tóxica não mora apenas no assédio moral, no excesso de horas… Está no líder que não xinga, mas também não olha na sua cara. Na empresa que não dá voz para que as pessoas opinem sobre os caminhos do próprio trabalho. Na cultura que despersonaliza o indivíduo, que privilegia ainda mais aqueles que já são privilegiados.

Na sua opinião, as empresas terão que mudar?

As organizações mudam por alguns motivos específicos. Se eu não consigo trazer gente boa nas condições que eu tenho, se estou perdendo meu operacional, vou precisar mudar. Mas mudar em quê? A verdade é que estamos em um grande laboratório.

Durante a pandemia vivemos uma imposição de novas formas de trabalho. Não vivemos o home office. Quando muito, existiu o “homem office” e a “mulher office”, com o perdão do trocadilho. Foi comum ver, em casais com filhos em que uma das partes se fechou no escritório enquanto outra ficou na cozinha, cuidando da casa, da família. Em sua maioria, o segundo papel coube às mulheres.

Portanto, não podemos simplesmente replicar o que foi vivido durante a pandemia em termos de trabalho remoto. O momento é de investigar e desenhar novos modelos. Para isso, a liderança é essencial.

Qual é o papel exato das lideranças nesse cenário?

O líder deve fazer a gestão da entrega. Esse é seu papel principal. Para alguns gestores, foi um enorme desafio trocar a sensação – ilusória, que fique claro – de controle das pessoas pelo controle do resultado. Muitos líderes trabalhavam na base de ver a pessoa no escritório e sentir que ela está trabalhando, quando poderia estar fazendo compras, no whatsapp ou perdida em pensamentos mesmo.

Não ver o time todos os dias trouxe uma insegurança para esses líderes que passaram a buscar esse controle sobre o tempo do outro de formas muito invasivas, como pedindo para as pessoas deixarem a câmera do computador aberta, utilizando softwares de vigilância, enviando mensagens e exigindo respostas imediatas.

Pode dar um exemplo?

Ouvi um diretor, por exemplo, questionando “como eu sei que o meu funcionário está trabalhando se eu não vejo?”. Minha resposta foi: como você sabe que ele está trabalhando quando você o vê? O exemplo que ele deu foi que se a pessoa está no escritório e precisa ir ao médico durante o horário de trabalho, precisa avisar e compensar o horário depois. Se, por outro lado, estiver em home office, pode não avisar nem compensar.

Entendo quem pensa assim mas vamos supor que este seja um bom profissional, que esteja entregando resultado. O que o chefe que está de olho só na presença vai pensar é “não estou dando trabalho suficiente. Eu preciso preencher a vida dessa pessoa completamente”. Mas, de uma maneira saudável, as pessoas deveriam ter 80% do seu tempo tomado e 20% para descansar, descontrair, criar. Num mundo complexo em que a descrição de cargo se torna uma mentira corporativa, é preciso ter tempo para não fazer nada.

Este ano, a OMS reconheceu a Síndrome de Burnout como um fenômeno relacionado ao trabalho. O aumento da incidência de burnout pode ter a ver com esse movimento de demissões em massa?

Foi desse ponto, da necessidade de controle do tempo das pessoas, que partiu toda a questão de saúde mental que virou tema central no mundo do trabalho. Isso porque mesmo uma organização que tratou bem a sua equipe, não mudou sua estrutura, pode ter dado espaço para que um líder ultrapassasse essas fronteiras.

Fomos confrontados com essas fronteiras durante os últimos dois anos. Tivemos que conversar com telas de computador, vimos colegas precisando parar uma reunião porque precisavam atender aos filhos chorando. O tempo todo tivemos que fazer escolhas.

O burnout é um tema muito importante, porque durante muito tempo as pessoas conseguiam identificar as características do desconforto mas se classificavam como uma falta de resiliência e confundiam vulnerabilidade com fragilidade. Não somos inquebráveis. Todos nós somos vulneráveis e o mundo do trabalho não nos deu tempo para mostrar isso.

É importante fazer uma separação também. O filósofo espanhol José Ortega y Gasset escreveu que: “eu sou eu e minha circunstância”. O burnout não é apenas um cansaço, é um esgotamento de recursos psicológicos. Está ligado ao indivíduo, mas está ligado também à organização.

Como ficam as pessoas nesse novo mercado de trabalho?

As pessoas terão o desafio de não confundirem esforço com sofrimento. O trabalho não será sempre confortável. Precisamos de momentos de superação e melhorias para, justamente, descobrirmos capacidades que a gente não tinha. É aquele nível médio de tensão que faz uma pipa voar no céu.

Como reverter isso que parece uma tendência de esgotamento das pessoas pelo trabalho?

As empresas vão precisar trabalhar. Incentivar a personalização para que as pessoas se sintam enxergadas. Também vejo um aumento de salário, mas não enxergo como algo negativo.

A guerra de talentos já existe em muitos setores (especialmente o de tecnologia) e era comum ver leilões de salário acontecendo entre esses trabalhadores. Esses leilões poderiam se estender para outras áreas diante a escassez de talento ?

Quando aumentamos a estrutura econômica, as empresas precisam reavaliar seus critérios salariais. Repensar por que pagam quanto pagam. Existe uma parte do salário que é a compra do tempo de uma pessoa, mas deveria existir outra que é a recompensa por aquilo que essa pessoa entrega.

O salário, historicamente, foi desenhado para atender às necessidades mínimas do trabalhador ou para estar na média do mercado. Agora estamos em outro momento, o de trabalhar no reconhecimento moral, de agradecer de verdade, de expor as conquistas. E isso precisa ser mostrado.

Em toda essa discussão sobre a Grande Debandada e qual é a forma mais adequada de trabalhar, é muito importante ter a clareza que isso é uma construção do relacionamento e da vida das pessoas. Nem as empresas nem os líderes terão uma fórmula pronta. O que eu sei é que as pessoas precisam ter um protagonismo para criar o futuro do trabalho. Isso não será descoberto, será criado.

Mariana Amaro

Editora de Negócios do InfoMoney e apresentadora do podcast Do Zero ao Topo. Cobre negócios e inovação.