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Moinhos de vento e o festival de besteirol

Por que está errado o trabalho que questiona, mais uma vez, o déficit da Previdência
Por  Paulo Tafner -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Recente trabalho elaborado por pesquisadores da Unicamp intitulado “O Mito do custo fiscal e da regressividade da aposentadoria por tempo de contribuição” rendeu matéria ofensiva e grosseira na Revista Capital, ensejou algum debate na mídia e mobilizou parlamentares de oposição a proporem até uma CPI sobre Previdência.

Basicamente, o trabalho elaborado por esses pesquisadores procura “demonstrar” que a aposentadoria por tempo de contribuição (ATC) gera superávit aos cofres da Previdência e que esse superávit ajuda no financiamento do déficit.

Aprendi ao longo da vida que cada um escolhe o desafio intelectual proporcional ao seu próprio tamanho. Assim é que os autores decidiram duelar com uma lâmina de PowerPoint de minha autoria e que Marcos Lisboa utilizou em uma apresentação que fez em uma Audiência Pública na Câmara dos Deputados. Devo salientar que Pedro Nery à mesma época fez algo semelhante e com o mesmo intuito.

E o que apresentava a referida lâmina? Algo bastante simples, mas que retrata adequadamente (ainda que não perfeitamente) o descasamento de financiamento de nossa Previdência. Não tratava de nenhum exercício atuarial, nem tampouco de aspectos distributivos de nossa Previdência.

Nosso sistema previdenciário funciona em regime de repartição simples, o que significa que a contribuição dos atuais ativos financia os gastos correntes com pagamento de benefícios. São apenas fluxos contemporâneos: o que se recolhe de contribuições de ativos é utilizado para pagar os benefícios previdenciários, como aposentadorias (por tempo de contribuição, por idade ou por invalidez), as pensões por morte, os auxílios (doença, reclusão e acidente), o salário maternidade e outros. Note que não estou incluindo aqui os benefícios acidentários nem os benefícios assistenciais, sendo o principal deles o BPC (Benefício de Prestação Continuada).

A lâmina procurava mostrar que a soma de contribuições (com alíquota de 32%, porque há setores que pagam alíquota extraordinária, o que amplifica as receitas e nenhum impacto tem nas despesas) de um indivíduo com as características típicas de um potencial candidato a receber, no futuro, uma aposentadoria por tempo de contribuição é insuficiente para financiar as despesas de quem está aposentado nesta mesma condição, ou seja, um aposentado por tempo de contribuição.

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No exemplo apresentado na lâmina, procurava mostrar que, para um indivíduo do sexo masculino, dos 312 benefícios recebidos esperados (aproximadamente 24 anos), as contribuições do ativo cobriam apenas 11 anos de recebimento do benefício integral, restando 177 benefícios sem cobertura de fundos (aproximadamente 13 anos).

Nas apresentações em que utilizo essa lâmina, enfatizo que, se o tipo de contribuição mais densa e mais elevada não é suficiente sequer para cobrir um benefício equivalente de aposentadoria por tempo de contribuição, como financiar os demais benefícios? Como financiar os benefícios de risco, como as aposentadorias por invalidez (que representam em média 12% do total de benefícios previdenciários e 11% do gasto com esses mesmos benefícios), a pensão por morte (que representa 27% dos benefícios previdenciários e mais de 24% do gasto com benefícios previdenciários) e outros, como auxílio-doença, auxilio-acidente ou reclusão?

Trata-se, portanto, de um exercício singelo que procura mostrar a insustentabilidade do sistema previdenciário brasileiro. Poderia ser levantado o argumento – este pertinente – de que o financiamento é feito pelo conjunto de trabalhadores ativos e que, se houver número suficiente, o somatório das contribuições poderia ser suficiente para arcar com as despesas.

Mas se, como apresentado na lâmina, a contribuição total de um indivíduo arca com apenas 43% da despesa de uma aposentadoria por tempo de contribuição e a despesa desse tipo de benefício representa 30% dos gastos com benefícios previdenciários (e apenas estes), se tivéssemos oito contribuintes ativos com essas características contributivas, o financiamento dos benefícios previdenciários estaria coberto.

No entanto, como é sabido há muito tempo (veja, por exemplo, os trabalhos clássicos de Francisco Barreto e Kaizô Beltrão), a razão efetiva de contribuintes é ligeiramente superior a 2, ou seja, temos apenas pouco mais de dois contribuintes para cada beneficiário. Nessas condições (e no futuro isso vai piorar), o sistema não tem sustentabilidade.

Ora, foi contra esse simples exercício que se insurgiram os autores da Nota Técnica. Afirmaram que seu trabalho “refaz uma simulação equivocada apresentada em audiência pública na Câmara dos Deputados para criticar a ATC por economistas especializados na questão previdenciária: Marcos Lisboa e Paulo Tafner”.

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Ao apresentar seus argumentos, cometem erros primários e elementares de quem não conhece a legislação previdenciária. Um simples exemplo revela isso. Dizem eles: “A memória de cálculo também não é apresentada para o item 2, que calcula erroneamente 312 benefícios. Embora os autores (eu e Marcos Lisboa) aleguem que o aposentado gozará de 24 anos de sobrevida com aposentadoria e 312 benefícios mensais, na verdade deveriam escrever 26 anos [312/12=26]”. Eles esqueceram que a aposentadoria é recebida em 13 parcelas anuais, porque há o 13º salário. A grande “memória” de cálculo é apenas e tão somente a divisão de 312 por 13.

A partir desse ponto na Nota Técnica, começa o show de horrores. São erros e equívocos de toda natureza: erram no cálculo do fator, erram nas expectativas de sobrevida, erram pelo desconhecimento da legislação e erram nos princípios e fundamentos adotados. Senão vejamos.

Afirmam os autores: “O pior é que os autores (eu e Marcos Lisboa) não aplicam o método tradicional de cálculo atuarial ou matemática financeira que é usado na bibliografia especializada para avaliar justiça social de sistemas previdenciários (como pretendem fazer): trazer a valores presentes tanto as contribuições quanto os benefícios”.

O que os autores fazem é, simples e erroneamente, trazer para o sistema de repartição a lógica da capitalização. Aliás, capitalização é palavra profana para os mesmos autores. Como imputar rendimentos de uma suposta aplicação, se o recurso, como todos sabem, é utilizado para pagamento de benefícios correntes?

O tal exercício “atuarial” deve deixar envergonhados os competentes profissionais de atuária e os membros do IBA (Instituto Brasileiro de Atuária). Afinal, que estudo atuarial é esse em que a massa é composta por um indivíduo, existe apenas um evento (a aposentadoria por tempo de contribuição) e esse evento é determinístico, sem levar em consideração a regra 85/95? Que sistema é esse que ignora o regime do Simples e que parte não desprezível das ATCs são obtidas por profissionais liberais, com alíquotas muito inferiores, e a totalidade da contribuição deixa de fora todos os benefícios de risco, apenas para citar alguns “pequenos detalhes”?

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Na tentativa de dar um cunho científico ao trabalho realizado na Nota, os autores utilizam a “formulação de Giambiagi & Afonso (2009)”, mas “deixam” de lado as advertências que Giambiagi e Afonso apresentam em suas conclusões, sendo as duas primeiras: “[…] embora as alíquotas aqui calculadas revelem-se suficientes para cobrir os benefícios de natureza programável, particularmente a aposentadoria por tempo de contribuição, elas podem não ser suficientes para, adicionalmente, custear os benefícios de risco, não programáveis como, por exemplo, os auxílios em caso de doença ou as aposentadorias por invalidez. E esses benefícios representam uma parcela expressiva dos gastos do INSS. Segundo, deve ser lembrado que os cálculos aqui efetuados não abarcam a concessão de pensões, que são importante componente do dispêndio previdenciário […]”. (pag. 174 do trabalho de Giambiagi e Afonso, negrito nosso).

Em suma, no exercício de Giambiagi e Afonso, o que se procura mostrar é que se a totalidade da alíquota de 32% fosse destinada apenas para financiar tão somente os benefícios programados em um regime de capitalização, então o sistema seria equilibrado. Ficariam de fora, todos os benefícios previdenciários de risco, os benefícios acidentários e os assistenciais, ou seja, mais da metade da despesa do INSS.

Há validade e relevância técnica no exercício proposto por Giambiagi & Afonso para análises preliminares de um sistema de capitalizaçao para cobertura de benefícios programáveis – com as devidas ressalvas apresentadas pelos autores. Mas não é adequado para avaliação do sistema de repartição brasileiro e seu amplo conjunto de benefícios (previdenciários, acidentários e assistenciais). E mais, não levaram em conta o Simples e o artigo foi feito em uma época de juros particularmente elevados e não havia a regra 85/95. Nos tempos atuais e levando isso em conta, certamente, o resultado seria outro.

O mesmo, porém, não se pode dizer acerca da Nota Técnica. Não tem nenhum valor técnico ou analítico. Há erros primários e lacunas inexplicáveis e desconhecimento básico da legislação. Certamente, como forma de compensar as lacunas, surgirão ideias como retirar das contas da previdência a pensão, a aposentadoria por invalidez e os auxílios, pois são todos “instrumentos civilizatórios” que devem ser arcados pelo Tesouro. Seria mais uma forma transversa, porém usual da parte desses analistas, de subtrair despesas, inflacionar receitas e concluir que não há déficit, nem subsídios aos grupos favorecidos da sociedade. Defesa descarada de privilégios.

Enfim, ao término da leitura de “O Mito do custo fiscal e da regressividade da aposentadoria por tempo de contribuição” e de sua continuidade “A falsificação nas contas oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime Geral de Previdência Social”, a sensação que se tem é os autores prometeram aos leitores uma Ferrari, mas entregaram uma carroça velha e quebrada, sem banco, sem eixo e sem rodas, puxada por patos mancos.

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Na ausência de substância técnica, o que resta são duelos com moinhos de vento e um festival de besteirol.

Paulo Tafner É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery

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