Na ONU, Bolsonaro defende tratamento sem eficácia contra Covid-19, critica passaporte sanitário e faz aceno à sua base eleitoral

Havia uma expectativa de que o presidente fizesse uma fala em tom diplomático e conciliador, mas o discurso de campanha prevaleceu

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) discursou, nesta terça-feira (21), na abertura da 76ª Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, em Nova York. Veja a íntegra pelo vídeo acima.

Esta foi a terceira vez que o mandatário falou no evento. Pela tradição, o representante brasileiro é o chefe de Estado encarregado a inaugurar oficialmente a fala dos presidentes mundiais na Assembleia-Geral desde 1947.

No breve pronunciamento, Bolsonaro reforçou a defesa de bandeiras conservadoras, em aceno à sua base eleitoral, chamou atenção para a recuperação econômica do país e destacou o avanço da vacinação contra a Covid-19 – embora tenha mantido posição enfática contra o chamado passaporte sanitário e em defesa do uso de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento precoce da doença.

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“Venho aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões. O Brasil mudou, e muito, depois que assumimos o governo em janeiro de 2019. Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção”, disse.

“O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo. Isso é muito, é uma sólida base, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo. Nossas estatais davam prejuízos de bilhões de dólares, hoje são lucrativas”, complementou.

“Nosso Banco de Desenvolvimento era usado para financiar obras em países comunistas, sem garantias. Quem honra esses compromissos é o próprio povo brasileiro. Tudo isso mudou. Apresento agora um novo Brasil com sua credibilidade já recuperada”, afirmou. O uso do palanque internacional para falar com sua base no Brasil tem sido estratégia comum de Bolsonaro em seus discursos na ONU.

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“Temos a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e expressão”, reforçou em outro momento. O discurso de Bolsonaro durou cerca de 12 minutos.

Em outro aceno à sua base de apoio, Bolsonaro disse que “milhões de brasileiros” foram às ruas no último 7 de Setembro (Dia da Independência), no que ele chamou de “maior manifestação de nossa história”, para “mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso governo”.

Durante a fala, o presidente voltou a dizer que sempre defendeu o combate simultâneo aos efeitos sanitários e econômicos da pandemia do novo coronavírus. Ele lembrou do auxílio emergencial, pago à parcela da população em situação de vulnerabilidade durante a crise, e o avanço da vacinação no país ao longo dos últimos meses.

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“Até o momento, o Governo Federal distribuiu mais de 260 milhões de doses de vacinas e mais de 140 milhões de brasileiros já receberam, pelo menos, a primeira dose, o que representa quase 90% da população adulta. 80% da população indígena também já foi totalmente vacinada. Até novembro, todos que escolheram ser vacinados no Brasil, serão atendidos”, disse.

Bolsonaro também voltou a criticar o chamado “passaporte sanitário”, que é a exigência de vacinação adotada por alguns governos para o acesso a determinadas atividades. Ele é o único líder do G-20 presente em Nova York que declarou publicamente não ter se vacinado.

“Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina”, afirmou.

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Assim como em outras oportunidades, o mandatário também defendeu o uso de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento precoce da Covid-19.

“Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label”, disse.

“Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”, declarou.

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Havia uma expectativa de integrantes da ala política do governo e de analistas de que o presidente atendesse a apelos dos novos aliados e fizesse um discurso em tom diplomático e conciliador, mas o tom de campanha prevaleceu – o que indicaria uma vitória da chamada “ala ideológica” sobre o “centrão” e o Itamaraty em um momento negativo para o governo.

Bolsonaro afirmou, ainda, que seu governo “recuperou a credibilidade externa” do Brasil e que o país hoje apresenta um dos melhores desempenhos econômicos entre os emergentes. “Temos tudo o que investidor procura: um grande mercado consumidor, excelentes ativos, tradição de respeito a contratos e confiança no nosso governo”, frisou.

Do lado do meio ambiente, disse que “nenhum país do mundo possui uma legislação tão completa” quanto o Brasil, voltou a enaltecer a eficiência do agronegócio e manteve promessa de antecipar de 2060 para 2050 o objetivo de alcançar a neutralidade climática.

“O Brasil é um país com dimensões continentais, com grandes desafios ambientais. São 8,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 66% são vegetação nativa, a mesma desde o seu descobrimento, em 1500. Somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta, abrigando a maior biodiversidade do planeta. Lembro que a região amazônica equivale à área de toda a Europa Ocidental”, afirmou.

“Antecipamos, de 2060 para 2050, o objetivo de alcançar a neutralidade climática. Os recursos humanos e financeiros, destinados ao fortalecimento dos órgãos ambientais, foram dobrados, com vistas a zerar o desmatamento ilegal”, complementou.

Leia a íntegra do discurso:

“Senhor Presidente da Assembleia-Geral, Abdullah Sharrid,

Senhor Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres,

Senhores Chefes de Estado e de Governo e demais chefes de delegação,

Senhoras e senhores,

É uma honra abrir novamente a Assembleia-Geral das Nações Unidas.

Venho aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões.

O Brasil mudou, e muito, depois que assumimos o governo em janeiro de 2019.

Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção.

O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo.

Isso é muito, é uma sólida base, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo.

Nossas estatais davam prejuízos de bilhões de dólares, hoje são lucrativas.

Nosso Banco de Desenvolvimento era usado para financiar obras em países comunistas, sem garantias. Quem honra esses compromissos é o próprio povo brasileiro.

Tudo isso mudou. Apresento agora um novo Brasil com sua credibilidade já recuperada.

O Brasil possui o maior programa de parceria de investimentos com a iniciativa privada de sua história. Programa que já é uma realidade e está em franca execução.

Até aqui, foram contratados US$ 100 bilhões de novos investimentos e arrecadados US$ 23 bilhões em outorgas.

Na área de infraestrutura, leiloamos, para a iniciativa privada, 34 aeroportos e 29 terminais portuários.

Já são mais de US$ 6 bilhões em contratos privados para novas ferrovias. Introduzimos o sistema de autorizações ferroviárias, o que aproxima nosso modelo ao americano. Em poucos dias, recebemos 14 requerimentos de autorizações para novas ferrovias com quase US$ 15 bilhões de investimentos privados.

EM NOSSO GOVERNO PROMOVEMOS O RESSURGIMENTO DO MODAL FERROVIÁRIO.

Como reflexo, menor consumo de combustíveis fósseis e redução do custo Brasil,

em especial no barateamento da produção de alimentos.

Grande avanço vem acontecendo na área do saneamento básico. O maior leilão da história no setor foi realizado em abril, com concessão ao setor privado dos serviços de distribuição de água e esgoto no Rio de Janeiro.

Temos tudo o que investidor procura: um grande mercado consumidor, excelentes ativos, tradição de respeito a contratos e confiança no nosso governo.

Também anuncio que nos próximos dias, realizaremos o leilão para implementação da tecnologia 5G no Brasil.

Nossa moderna e sustentável agricultura de baixo carbono alimenta mais de 1 bilhão de pessoas no mundo e utiliza apenas 8% do território nacional.

Nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa.

Nosso Código Florestal deve servir de exemplo para outros países.

O Brasil é um país com dimensões continentais, com grandes desafios ambientais.

São 8,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 66% são vegetação nativa, a mesma desde o seu descobrimento, em 1500.

Somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta, abrigando a maior biodiversidade do planeta. Lembro que a região amazônica equivale à área de toda a Europa Ocidental.

Antecipamos, de 2060 para 2050, o objetivo de alcançar a neutralidade climática. Os recursos humanos e financeiros, destinados ao fortalecimento dos órgãos ambientais, foram dobrados, com vistas a zerar o desmatamento ilegal.

E os resultados desta importante ação já começaram a aparecer!

Na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior.

QUAL PAÍS DO MUNDO TEM UMA POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL COMO A NOSSA?

Os senhores estão convidados a visitar a nossa Amazônia!

O Brasil já é um exemplo na geração de energia com 83% advinda de fontes renováveis.

Por ocasião da COP-26, buscaremos consenso sobre as regras do mercado de crédito de carbono global. Esperamos que os países industrializados cumpram efetivamente seus compromissos com o financiamento de clima em volumes relevantes.

O futuro do emprego verde está no Brasil: energia renovável, agricultura sustentável, indústria de baixa emissão, saneamento básico, tratamento de resíduos e turismo.

Ratificamos a Convenção Interamericana contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância.

Temos a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e expressão.

14% do território nacional, ou seja, mais de 110 milhões de hectares, uma área equivalente a Alemanha e França juntas, é destinada às reservas indígenas. Nessas regiões, 600.000 índios vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades.

O Brasil sempre participou em Missões de Paz da ONU. De Suez até o Congo, passando pelo Haiti e Líbano.

Nosso país sempre acolheu refugiados. Em nossa fronteira com a vizinha Venezuela, a Operação Acolhida, do Governo Federal, já recebeu 400 mil venezuelanos deslocados devido à grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana.

O futuro do Afeganistão também nos causa profunda apreensão. Concederemos visto humanitário para cristãos, mulheres, crianças e juízes afegãos.

Nesses 20 anos dos atentados contra os Estados Unidos da América, em 11 de setembro de 2001, reitero nosso repúdio ao terrorismo em todas suas formas.

Em 2022, voltaremos a ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Agradeço aos 181 países, em um universo de 190, que confiaram no Brasil. Reflexo de uma política externa séria e responsável promovida pelo nosso Ministério de Relações Exteriores.

Apoiamos uma Reforma do Conselho de Segurança ONU, onde buscamos um assento permanente.

A pandemia pegou a todos de surpresa em 2020. Lamentamos todas as mortes ocorridas no Brasil e no mundo.

Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade. As medidas de isolamento e lockdown deixaram um legado de inflação, em especial, nos gêneros alimentícios no mundo todo.

No Brasil, para atender aqueles mais humildes, obrigados a ficar em casa por decisão de governadores e prefeitos e que perderam sua renda, concedemos um auxílio emergencial de US$ 800 para 68 milhões de pessoas em 2020.

Lembro que terminamos 2020, ano da pandemia, com mais empregos formais do que em dezembro de 2019, graças às ações do nosso governo com programas de manutenção de emprego e renda que nos custaram cerca de US$ 40 bilhões.

Somente nos primeiros 7 meses desse ano, criamos aproximadamente 1 milhão e 800 mil novos empregos. Lembro ainda que o nosso crescimento para 2021 está estimado em 5%.

Até o momento, o Governo Federal distribuiu mais de 260 milhões de doses de vacinas e mais de 140 milhões de brasileiros já receberam, pelo menos, a primeira dose, o que representa quase 90% da população adulta. 80% da população indígena também já foi totalmente vacinada. Até novembro, todos que escolheram ser vacinados no Brasil, serão atendidos.

Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina.

Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina.

Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label.

Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial.

A história e a ciência saberão responsabilizar a todos.

No último 7 de setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história, mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso governo.

Como demonstrado, o Brasil vive novos tempos. Na economia, temos um dos melhores desempenhos entre os emergentes.

Meu governo recuperou a credibilidade externa e, hoje, se apresenta como um dos melhores destinos para investimentos.

É aqui, nesta Assembleia Geral, que, vislumbramos um mundo de mais liberdade, democracia, prosperidade e paz.

Deus abençoe a todos”.

Pressão internacional

Bolsonaro chegou ao evento pressionado pela comunidade internacional por não ter tomado a vacina contra a Covid-19 – situação que provocou constrangimento à delegação brasileira nos últimos dias, como para circular por determinados locais de Nova York. Sem poder entrar em restaurantes, que exigem comprovante de vacinação, ele precisou comer pizza numa calçada no domingo ao lado de ministros.

O prefeito da cidade, Bill de Blasio, chegou a dizer que o presidente brasileiro não deveria incomodar se não quer ser vacinado. “Precisamos mandar uma mensagem a todos os líderes mundiais, incluindo mais notavelmente Bolsonaro, do Brasil, que se você pretende vir aqui, precisa estar vacinado. Se não quiser ser vacinado, não incomode vindo, porque todo mundo deveria estar junto”, disse.

Ontem (20), Bolsonaro participou de reunião bilateral com o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, de quem ouviu uma defesa enfática do imunizante produzido pela farmacêutica britânica AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford. O presidente brasileiro é o único líder do G-20 que está presente em Nova York para o fórum da ONU e declarou publicamente não ter se vacinado.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.