Como a inflação ajuda as contas do governo
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Foi em agosto de 1971 que o 37º presidente americano, Richard Nixon, pôs fim ao último padrão-ouro conhecido. Na prática, a atitude de Nixon apenas colocou fim a uma “farsa” já mais do que conhecida.
Em teoria, após o acordo de Bretton Woods em 1944, o dólar americano seria medido em função das reservas de ouro contidas nos cofres do banco central americano, com a emissão de novos dólares limitados a essas reservas.
Na prática, porém, os Estados Unidos entraram naquilo que o presidente francês Charles De Gaulle chamou de “privilégio exorbitante”. Ou, em resumo, a capacidade dos EUA de emitirem dólares sem lastro para comprar produtos estrangeiros.
Quando De Gaulle ameaçou converter os dólares detidos pela França em ouro, o sistema ruiu.
Desde então o dólar, como as demais moedas, perderam o chamado “lastro”, uma quantidade limitante que impede a impressão desenfreada.
Como o real brasileiro, o dólar também deriva seu próprio nome de uma moeda cotada em metais, no caso uma moeda de prata chamada de Joachimsthaler, abreviada como Thaler e que no Reino Unido se tornaria “dollar”. O real por sua vez deriva do Real de 8, uma moeda espanhola de ouro. Em suma, os metais conviveram até bem pouco tempo com a própria noção de dinheiro.
Apenas nas últimas décadas a humanidade conviveu com padrões monetários sem qualquer noção de limitação em seus meios circulantes.
Desde 2008, entretanto, esse descasamento vem ganhando ainda mais força.
Para conter a crise que assolou o mundo naquele mesmo ano, bancos centrais ao redor do planeta criaram os chamados “Quantitative Easing”, uma maneira de injetar recursos no sistema financeiro para aquecer a economia.
Durante a última década os resultados na economia real pareceram bem positivos. A economia americana se aqueceu, chegando a um desemprego próximo de 0, ou na casa de 3,6%, e um aumento do PIB considerável.
Em outro ambiente, o do mercado financeiro, os números são ainda mais fortes. O mercado acionário americano bateu recordes atrás de recordes, deixando indicadores famosos, como o “índice Buffett”, que mede o tamanho das bolsas americanas em relação ao PIB do país, um tanto quanto fora de moda.
A correlação entre o índice da Nasdaq, a bolsa americana de tecnologia, e o Dow Jones, também chegou a níveis muito maiores em relação aos do período da chamada “bolha das ponto com” no final dos anos 90.
Em resumo, nunca antes o mundo presenciou uma década de tamanha expansão na oferta de dinheiro. A disponibilidade destes recursos, chamada de “liquidez”, bateu recordes. Ainda assim, a economia real cresceu menos, puxada por uma diminuição do crescimento chinês (o grande motor do crescimento na primeira década deste século).
Este cenário se tornaria ainda mais aprofundado durante a crise do coronavírus.
Desde o início da pandemia, em março do último ano, o banco central americano colocou em circulação US$ 1 em cada US$ 3 já criados desde 1917.
O estímulo avassalador sustentou uma retomada rápida da economia, e um crescimento impressionante na bolsa.
Estima-se que cerca de 10% do total recebido de “auxílio emergencial” pelos americanos tenham ido para comprar Bitcoins, enquanto ⅓ foram para o mercado acionário. Na soma, foram ao menos US$ 700 bilhões (o dobro da arrecadação do governo brasileiro), entregue às famílias americanas na forma de cheques.
A parcela restante virou consumo, o que levanta hoje uma importante questão: o aumento recorde de preços nos Estados, que vê o CPI (o índice de inflação americano), chegar a 5% (o maior valor desde 2008), seria algo transitório ou veio para ficar?
A resposta dessa questão impacta diretamente o Brasil. Cabe lembrar que na última vez em que os Estados Unidos estiveram ameaçados com inflação elevada, o banco central americano elevou seus juros a níveis recordes provocando assim um aumento no custo da dívida de economias latino-americanas.
Esse processo por lá acarretou no que conhecemos aqui como “década perdida”, ou os anos 80.
A elevação de juros do Fed, o BC americano, ainda é uma incógnita, haja vista que os juros baixos permitem hoje um endividamento maior do governo. Uma leve alteração, entretanto, tem o poder de provocar um estrago em países como o Brasil.
Isso ocorre pois estamos hoje em uma situação também nunca antes vista. Nossa taxa de juros (que deve subir até o final do ano), é menor do que a inflação.
Essa situação atípica garante que o Brasil cobre juros reais (descontada a inflação), de até -3% ao ano. Em suma, se você possui dinheiro em um CDB que rende 100% do CDI, como a NuConta por exemplo, você está pagando 3% ao ano para o governo.
Essa situação garante uma folga no orçamento e na dívida pública. É o que chamamos de “ajuste via inflação”. O governo passa a arrecadar mais e represa aumentos de gastos corrigindo-os abaixo da inflação.
Um grande exemplo é a tabela do imposto de renda. Se fosse corrigida pela inflação, a tabela permitiria que quem receba abaixo de R$ 4 mil por mês esteja isento do Imposto de Renda. Como as correções são menores, a tabela hoje inicia a cobrança em R$1923, uma defasagem que chega a 113% ao longo das últimas 3 décadas.
De fato, a inflação brasileira em 12 meses acumula uma alta de 8% em maio, em boa parte graças a desvalorização do dólar e ao consumo represado durante a pandemia.
Viagens, passagens aéreas e outros bens e serviços não consumidos durante o período mais forte da pandemia começam a retomar agora, tanto nos EUA quanto no Brasil.
O aumento de commodities, que por aqui dá as caras no preço do aumento de combustíveis, tem um efeito curioso. A alta em produtos agrícolas deve permitir ao país ter um superávit comercial recorde, de US$ 83 bilhões no ano, ajudando a derrubar o dólar.
Encontrar um equilíbrio para a moeda americana parece um ponto mais importante para o país hoje do que o valor em si.
Nos planos do governo e em palavras do Secretário do Tesouro, é possível ver que a situação já permite um superávit primário (gastos menores do que a arrecadação), voltando em 2024, ou 2 anos antes do previsto.
A situação da dívida, fortemente influenciada pela taxa de juros real, também parece menos desastrosa do que se estimava antes. É possível, e até provável, que a relação entre dívida e PIB caia para 84% este ano, contra 88,3% do final de 2020.
O grande problema em qualquer ajuste feito por meio de uma alta inflacionária, porém, está no poder de compra da população.
A inflação afeta, invariavelmente, os mais pobres de maneira desigual, uma vez que estes não se beneficiam de altas na bolsa ou não têm acesso a instrumentos de proteção no mercado financeiro.
Um exemplo prático de como isto ocorre está na alta dos combustíveis no início do ano.
Com a vacinação avançando, as economias globais tiveram um aumento expressivo em demanda, o que por sua vez puxou o preço do barril de petróleo, levando a Petrobras a reajustar o valor dos combustíveis.
Como a arrecadação de impostos, como ICMS, por exemplo, considera um “preço base”, quando o preço nas refinarias aumenta, o preço base também aumenta, e a arrecadação de impostos cresce.
Na prática, o preço dos combustíveis subiu lá fora, gerando maior arrecadação aqui. A conta, claro, ficou para o consumidor.
A situação permitiu uma melhoria na arrecadação dos estados, cuja despesa está ainda travada em função de compromissos firmados durante a pandemia (no pacote de auxílio federal).
Reverter essa situação demanda um equilíbrio complicado e feito essencialmente no longo prazo.
Reformas que sejam amplas, e não restritas, como a proposta atual de reforma administrativa, criam um cenário de maior previsibilidade no futuro, demandando assim menor pressão sobre juros e um cenário mais realista.
Se conseguiremos avançar em uma agenda do tipo ainda é uma questão incerta. O que é certo no momento porém, é que a pressão sobre preços ainda deve continuar por mais algum tempo, pois os juros devem igualar a inflação apenas no longo prazo, e o crescimento econômico deste ano também ajudará a pressionar a inflação.
Um alívio porém pode vir da queda do dólar em função da melhoria dos chamados ‘termos de troca’, quando nossos produtos se tornam mais caros lá fora, ajudando a balança comercial.
Uma valorização do real pode, sem surpresa, melhorar o poder de compra da população, fazendo o caminho inverso do último ano.
Na prática, estamos entre um cenário com melhoria no poder de compra e um ajuste de contas do governo mais acelerado. A escolha é, acima de tudo, política.
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