Não é só PT e PSDB: “sistema inteiro está em crise e precisa mudar”, diz pesquisadora

Diagnóstico dos pesquisadores sobre a mensagem das ruas, panelaços e caras feias é claro: há uma perda de legitimidade do atual sistema de representações e instituições, e ele precisa passar por profundas reformas

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – Poucos dias depois da manifestação do dia 12 de abril, que levou pela segunda vez em um intervalo de cerca de um mês milhares de brasileiros às ruas das grandes cidades do País para protestar contra a corrupção e o atual governo, uma pesquisa de mapeamento do público presente chamou a atenção e ganhou espaço em alguns veículos da imprensa nacional. O estudo, coordenado pelos professores Pablo Ortellado (USP) e Esther Solano (Unifesp) revelou dados importantes sobre quem são e como pensam os atuais manifestantes.

Muito além do que apontar para o fato de mais de 70% terem renda familiar superior a R$ 3.940,00 ou que 77,4% se autodenominam brancos e 93,6% concluíram pelo menos o ensino médio, o levantamento, que contou com 571 entrevistas realizadas ao longo de boa parte dos protestos, revelou a existência de um clima extremamente hostil para partidos e lideranças políticas, além dos próprios veículos da imprensa tradicional. O diagnóstico dos pesquisadores é claro: há uma crise no atual sistema de representações e instituições, e ele precisa passar por profundas reformas.

Procurando entender um pouco melhor essa mensagem das ruas, panelaços e caras feias, o InfoMoney foi atrás da professora adjunta de Relações Internacionais da Unifesp e uma das coordenadoras do estudo, Esther Solano. Em entrevista exclusiva, Esther confirmou o clima de deslegitimidade dos partidos, falou sobre os desafios de se promover uma reforma política em uma formação de Congresso mais conservadora, a atual crise política do PT e do governo, além da carência de novos líderes na política atual. Confira parte dessa conversa:

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InfoMoney – Quais são as grandes conclusões que vocês chegam com esse mapeamento do perfil do manifestante paulistano do dia 12 de abril?
Esther Solano – Na verdade, acho que são duas grandes conclusões. A primeira de todas elas é que aqueles manifestantes que vão às ruas com o sentimento claramente antipetista não somente desconfiam do PT. Eles desconfiam de todo o sistema partidário. O nível de confiança no PSDB ou no PMDB é muito baixo também. A outra conclusão que chegamos é que a imprensa mais tradicional também tem um grau de confiança baixo dos manifestantes, e destacam-se aqueles comentaristas mais polêmicos, estilo Sherazade, Reinaldo Azevedo. Uma possível constatação, quem sabe, também seria de que os manifestantes acreditam em informações inverídicas, imparciais, pouco confiáveis.

IM – A gente também percebe, ainda na mesma pesquisa, uma confiança maior nas figuras políticas do que nos partidos. Por exemplo, Aécio Neves, Geraldo Alckmin, Jair Bolsonaro e José Serra obtiveram o dobro da aprovação do partido mais bem avaliado pelos manifestantes (PSDB). O que explica isso?
ES – O partido, como instituição política, perdeu toda a credibilidade. A estrutura partidária, como base da democracia, não tem mais a confiança do cidadão. Ele confia muito mais em outra figura política – e também nem tanto. Estamos falando de grupos de cidadãos que votam no PSDB, que assumem posicionamento político de direita/centro-direita, então era para se ter um nível de confiança muito maior no Alckmin e no Aécio, por exemplo. O que não há. Temos, de um lado, uma crise de confiança absoluta nos partidos, enquanto, por outro, as próprias lideranças tampouco se colocam como altamente confiáveis. O crédito deles também não é alto. O que mostra a pesquisa é que um sistema conjunto está em crise. Não é simplesmente um partido, uma liderança, a Dilma ou o PT. Queríamos apontar a necessidade de se aplicar alguma reforma política, porque, conforme os dados mostram, as pessoas estão absolutamente descontentes com o sistema partidário.

IM – É um requisito, um manifesto expresso da população essa reforma política ou trata-se de uma inferência dessa perda de legitimidade do sistema?
ES – Além dessa pesquisa, nós já fizemos algumas outras com entrevistas. Quando você pergunta exatamente sobre a reforma política, muitas pessoas não sabem bem a resposta. Elas não conhecem muito bem o voto distrital, o voto em lista aberta, lista fechada. Elas não sabem muito bem por onde é o caminho, principalmente porque se perdem nos tecnicismos políticos, mas o que todo mundo pensa de fato é que alguma mudança tem que vir por aí.

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IM – Há algum partido que tenha uma necessidade maior ainda de mudança por conta dessa rejeição? Por exemplo, o PT ou o PMDB?
ES – A minha perspectiva é que o partido que está no governo sempre tem maior responsabilidade, sem dúvida nenhuma. No final das contas, ele que foi escolhido para comandar o país. Mas, quando você vê os dados, que mostram que realmente nenhum partido escapa nessa questão de legitimidade, eu diria que, se tiver reforma política, esse tipo de reflexão sobre a estrutura partidária tem que vir de todos eles, dos três grandes: PT, PSDB e PMDB. A responsabilidade maior recai sobre o PT, mas todos precisam pôr em prática essa autorreflexão e autocrítica.

IM – Recentemente, o PT anunciou que suas direções nacional, estaduais e municipais não vão aceitar mais o financiamento privado de campanha…
ES – O PT, como partido no poder, carrega uma responsabilidade de dar um início a esse tipo de reforma. Entretanto, qualquer tipo de reforma que se faça precisa ser estrutural e precisa englobar todo mundo, uma vez que o que a pesquisa mostra é justamente uma crise sistêmica, não algo que se restringe a um partido ou outro. No fundo, o sistema inteiro tem que mudar.

IM – Na sua percepção, agora que vemos os resultados das operações Lava Jato e Zelotes, que mostram que muito dessa corrupção está relacionado com essa questão de financiamento privado de campanha, a senhora acha que uma das soluções seria tornar público o financiamento das campanhas?
ES – Eu acho que sim. É uma questão mais pessoal, mas, para mim, essa deve ser uma das bandeiras da reforma política. Acho que essa situação é vergonhosa. Financiamento privado de campanha significa compra e venda de votos, favores e posições políticas, o que é absolutamente antidemocrático e ilegal. Sem dúvida nenhuma, a reforma básica de acabar com o financiamento privado das campanhas é elementar. Agora, é o que nós falamos: não pode ser que partido apresente a proposta e os outros boicotem isso. Tem que ser uma coisa consensual entre as partes. Por outro lado, uma coisa que vai em paralelo é fiscalizar com muito rigor o caixa dois, o dinheiro que pode fluir de atividades ilícitas.

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IM – Agora, como funcionaria o financiamento de campanha sem essas empresas? O governo teria condições de bancar todo o processo eleitoral? Teríamos que passar por mudanças grandes no sistema, não?
ES – Sim. Você deve saber sobre a Espanha, onde a maior parte do financiamento é público. Isso deve estar acompanhado de outras mudanças também. Primeiro: as campanhas lá são infinitamente mais baratas. Você tem uma campanha leve e curta e espaços de TV, propagandas muito menores. Outro problema que também acho muito importante é esse personalismo que temos nos partidos. As listas abertas, muitas vezes, nos fazem reféns de grandes figuras políticas: os Bolsonaros, os Cunhas etc., que gastam milhões e milhões nas campanhas sem reverter as conquistas em bem estar social e político. Seria muito mais importante ter uma legenda forte do que um personagem que sobressai na cena política.

IM – Esse personalismo a que você se referiu tem muito a ver com a proposta do PMDB, que é o distritão. Tendo em vista a força do partido hoje na Câmara, quais são os riscos de se discutir uma reforma política sob essas condições?
ES – Esse é o problema, né? Há uma necessidade de reforma política absoluta; as ruas estão pedindo, todo mundo está pedindo. Agora, o que me preocupa um pouco é o clima no qual será feita essa reforma. Não vejo que o Congresso, extremamente conservador em termos morais e políticos, esteja disposto a dialogar de uma forma cautelosa e crítica a respeito. Então, temos um pouco essa dualidade. A conjuntura atual não é das melhores, e mostra um parlamento que gasta mais energia em brigas de poder político do que realmente em pensar seriamente em uma reestruturação. Isso me preocupa muito. Acho que nós estamos em um momento extremamente delicado, que, se nós não exigirmos realmente que se faça uma reforma de seriedade, podemos ter uma reversão do sistema e andar para trás em vez de para frente. Esse Congresso, sem dúvida nenhuma, não é o melhor para fazer a reforma.

IM – Neste contexto, você preferiria um plebiscito?
ES – Eu também tenho muitas dúvidas, mas creio que o primeiro passo seria ter um debate social sério sobre a reforma política. Não pode ser que ela se faça intramuros no Congresso, por grupinhos como moeda de troca. Tem que ser um debate amplo. Convide os setores da população, a academia, os juristas, deixe todos falarem, abra debates públicos nas universidades para ver o que é melhor. Todo mundo tem dúvidas, sobretudo quando há tecnicismos. A população tem um nível de política muito baixo. Uma coisa a ser feita também, e isso recai um pouco sobre o governo, é justamente informar as pessoas, fazer um debate, contando com quem sabe sobre o assunto. Não importa se esperarmos mais, se será uma coisa demorada. O que mais importa é transparência nas decisões e contar com diversos setores da população.

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IM – Sobre a pesquisa de vocês e as manifestações: a grande bandeira dos últimos protestos, mais do que nos outros, foi essa questão do impeachment. Outro fator importante foi a grande homogeneidade do público. Isso tira a legitimidade do pedido de impeachment?
ES – O pedido de impeachment, por si, é bastante legítimo. Agora, ele virou um mantra político totalmente esvaziado de conteúdo. A legitimidade deixa de se fundamentar pelo vazio jurídico que ele tem. Muita gente tem colocado que é a classe alta e o branco que estão se manifestando. Por mais que seja condizente com a realidade, acho que isso não tira nenhuma legitimidade. Não importa se o sujeito mora em Higienópolis ou no Jardim Paulista; são cidadãos exatamente iguais. Acho que não devemos entrar nesse jogo, que é muito perigoso. Agora, realmente, o pedido de impeachment, para mim, está fora de qualquer tipo de cogitação política.

IM – Qual é a sua percepção do atual cenário político enfrentado pela presidente Dilma Rousseff? A perda de popularidade, essa dificuldade na articulação com um Congresso mais fragmentado…
ES – Não queria estar na pele dela, viu? Muito difícil. No final das contas, nessa questão da governabilidade, o jeito Lula de governar, o pacto entre os partidos como única forma de governar, que se teve durante muito tempo, pode reverter em condições negativas. Esse é outro fator que eu acho que também poderiam mudar na reforma política: quando você tem um Congresso altamente fragmentado, atomizado, com muitos partidos políticos, a governabilidade, sem dúvidas, é altamente ineficaz.
Portanto, de um lado temos uma governabilidade muito difícil, um Congresso muito atomizado, muitos partidos, e por outro, a crise econômica que está chegando ao país – lógico, é uma coisa evidente, não sei como as pessoas se assustam; era óbvio que tinha que chegar aqui. Também acho que faz parte desse contexto uma incapacidade do governo, talvez da própria presidente e setores mais altos do Planalto, em se comunicar com a população. Essa é uma coisa muito importante que o PT nunca devia ter perdido. Todos esses elementos tornam a conjuntura muito complicada.

IM – Como você enxerga o futuro dessa situação? O que o governo precisa fazer para recuperar a confiança e os índices de popularidade?
ES – Falando não como acadêmica, mas como cidadã, eu esperaria que o governo tivesse uma postura talvez mais assertiva. Por exemplo: as ruas estão pedindo uma reforma política, então vamos fazê-la. Mas uma reforma aberta, plural, transparente. As ruas estão pedindo o fim da corrupção, então vamos continuar lutando veementemente contra ela e reconhecer nossos erros. No fundo, parece que existe um temor para dar algum passo. Há uma paralisia dentro do governo. Ninguém faz nada por temer a tal governabilidade. Então, acho que precisa ser um governo não voltado para ter medo e ficar parado, mas um governo voltado para agir. Falta essa proatividade e essa comunicação. Agora que vamos ter uma reforma fiscal importante, um momento de cortes, um período economicamente difícil, então esclareça à população. Você precisa sair e falar com as pessoas para quem está governando. Grande parte dos que votaram no PT estão amplamente insatisfeitos com esses rumos que o governo está tomando. O partido precisa reconciliar com seus eleitores, senão vai perder tudo.

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IM – Existe um clima maior de polarização na política e um antipetismo consequente disso também?
ES – Bipolarização: é justamente esse clima que você vê na política e nas ruas. No entanto, pensar que existe um clima de polarização – aquela de PSDB-PT etc. – pode ser coisa um tanto artificial. No fundo, a situação é muito mais complicada do que tudo isso: não é uma polarização, é um sistema em crise. Então, para mim, não vale essa velha dicotomia. Quando você conversa com as pessoas, ninguém está satisfeito: o eleitor do PT não está satisfeito com o PT e o votante do PSDB não está satisfeito com o PSDB. Nenhum dos dois está satisfeito com o protagonismo que tem o PMDB. Está todo mundo altamente decepcionado. Então, acho que nós não devemos nos deixar levar a essa dicotomia, que é artificial. Ela está escondendo uma crise muito maior e muito mais estrutural do que tudo isso.

IM – Vivemos uma carência de formação de lideranças no Brasil?
ES – Na verdade, eu não diria que só no Brasil. Essa crise de legitimidade de novas lideranças é mundial. Uma coisa muito interessante que podemos ver na pesquisa é que as mesmas pessoas que não confiam no PSDB, no PT, no Aécio etc. confiam muito no movimento Vem Pra Rua, no Movimento Brasil Livre, que estão convocando as manifestações. Então, vemos que as pessoas querem acreditar, elas precisam confiar em alguém, elas querem realmente confiar em alguma liderança. Mas o sistema partidário já está em crise, porque não consegue produzir lideranças novas. Ele não consegue se renovar. Você tem novas lideranças que surgem dos movimentos sociais, dos movimentos de rua, dos coletivos, mas elas não se inserem nos partidos. Existe um alto grau de falta de institucionalidade. Os partidos têm uma grande opacidade para se reformularem.

IM – Como você entende a participação desses grupos de articulação dos protestos?
ES – Todo esse tipo de movimento social é extremamente importante, uma vez que são atores políticos muito relevantes. Eles estão provocando também mudanças e reflexões políticas. O problema de tudo isso é que muitos desses movimentos, como o MPL em julho, por exemplo, são muito refratários ao poder institucional. Muitas vezes, eles não querem dialogar com o poder público. Não adianta simplesmente você estar na rua se isso não tem um reflexo político por trás. Para mim, o grande dilema é como você coloca em comunicação o poder instituído com os movimentos de rua.

IM – Quais são os perigos dessa desinformação que a pesquisa mostra do público manifestante, mas que afeta toda a sociedade brasileira?
ES – A falta de informação é um risco tremendo que nós temos, porque, quando você se converte em um analfabeto político, você passa a ser uma pessoa altamente manipulável. Um agravante: essa pesquisa foi feita com pessoas com alto grau de escolaridade – a grande maioria deles tinha ensino superior completo. Aí vemos que existe uma divergência enorme entre ter um ensino superior completo e ter uma formação política. Uma das tarefas fundamentais é investir em formação política, sem dúvida. Caso contrário, teremos uma cidadania que não é crítica, que se deixa ir para um lado e outro, e é altamente manipulável. Esse é um risco enorme para a democracia.

IM – Vocês pretendem continuar esse tipo de pesquisa para próximas manifestações que virão?
ES – A ideia é continuar. Nós gostaríamos de aprofundar muito mais tudo isso, já que os dados foram muito significativos. Estamos em um processo de pensar para onde vamos. Agora foi como uma porta de entrada e vamos continuar. Acho vamos ter por aí mais resultados interessantes em breve. É tudo muito novo e a ideia é, um pouco, provocar o poder público também. Ninguém acredita em nada e eles precisam mudar alguma coisa. A gente faz a nossa parte. Se ninguém quer mudar, ao menos apresentamos alguns dados, que, para mim, são preocupantes. Ninguém acredita na imprensa, ninguém acredita nos partidos… Então, se o poder político quiser continuar como está, pelo menos não foi porque nós não apresentamos dados para eles. A bola está com eles.

*Esther Solano é professora adjunta no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora pela mesma instituição. Possui graduação em Ciências Físicas e mestrado e doutorado em Ciências Sociais, todos na Universidad Complutense de Madrid. Também tem experiência na área de Sociologia, com os temas principais de movimentos sociais e violência urbana. Recentemente, publicou “Pesquisa com os participantes da manifestação do dia 12 de abril de 2015 sobre confiança no sistema político e fontes de informação”, um mapeamento desenvolvido em parceria com o professor Pablo Ortellado (USP).

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.