Lula tem vitórias na economia e tropeços no Congresso em 2023; agenda fiscal é desafio para 2024

Presidente tenta postura pragmática na relação com o Congresso, mas focos de resistência permanecem; na política externa, governo busca novo posicionamento

Luís Filipe Pereira

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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Da invasão às sedes dos Três Poderes, em janeiro, em Brasília, à promulgação da reforma tributária pelo Congresso Nacional, em dezembro, o primeiro ano do retorno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Palácio do Planalto teve de tudo, menos tédio, e termina com ainda mais desafios projetados no horizonte em 2024.

Conciliar a necessidade de promover o equilíbrio fiscal com a pressão da sociedade por mais recursos em investimentos e políticas públicas, gerir uma coalizão heterogênea e administrar uma relação saudável com o Poder Legislativo mantendo uma base volúvel são apenas algumas das dificuldades que aguardam Lula no ano que vem. Sem falar na calcificação do quadro de polarização política que vem desde antes das últimas eleições.

O cenário externo também exigirá atenção em meio às incertezas sobre o desempenho das maiores economias do planeta e riscos geopolíticos que emergem em um cenário de nova correlação de forças entre as grandes potências. Além de todos os efeitos da emergência climática, que exigirá respostas cada vez mais assertivas.

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Especialistas ouvidos pelo InfoMoney acreditam que uma das principais missões de Lula em 2024 é fazer com que os esforços empreendidos por seu governo na aprovação de uma agenda econômica se traduzam em um efetivo aumento de receitas capaz de conduzir o Brasil ao sonhado equilíbrio das contas públicas. Tarefa ainda mais desafiadora em um ano de eleições municipais.

“O [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad tem uma tarefa hercúlea de engenharia contábil, de buscar fontes de receita e de evitar excessos. [Deve buscar] ajustes no orçamento em um ambiente muito complexo, tanto do ponto de vista político quanto econômico”, afirma Claudio de Moraes, professor de Macroeconomia e Finanças do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Apesar de vender um histórico de responsabilidade fiscal, Lula iniciou seu terceiro mandato sob olhares desconfiados de agentes econômicos – tanto pelo discurso expansionista adotado na campanha eleitoral, quanto pela Emenda Constitucional negociada antes mesmo da posse para expandir R$ 198 bilhões em despesas fora do teto de gastos (a chamada PEC da Transição).

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Reverter a percepção de risco acentuada foi a primeira missão de Haddad no governo. Ao longo do ano, o ministro negociou com diversos atores e conseguiu apoio suficiente para aprovar um novo marco fiscal, mudanças nas regras de julgamentos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), alterações na tributação de aplicações financeiras no exterior e de fundos exclusivos.

Também foi possível votar no Congresso Nacional a retirada do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, o novo marco legal para preços usados em transações internacionais entre empresas relacionadas (o chamado “preço de transferência”) e novas normas para subvenções (espécie de incentivo fiscal) concedidas por Estados com impactos em tributos federais. Além de uma agenda microeconômica, que envolveu temas como o novo marco de garantias.

As medidas representam boa parte do plano de voo apresentado logo em janeiro na busca pela chamada “recomposição da base fiscal do Estado” e contribuíram para acalmar os ânimos do mercado. O risco-país medido pelo Credit Default Swap (CDS) saiu de 289.453 em outubro de 2022 para 132.450 neste mês. Os contratos de juros futuros de longo prazo, com vencimento em janeiro de 2033, chegaram a marcar 13,49% em novembro do ano passado e agora estão em 10,37%. E o dólar comercial recuou da faixa de R$ 5,30 para atuais R$ 4,85 em um intervalo de um ano.

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Apesar do êxito de parcela expressiva das medidas arrecadatórias, o país caminha para encerrar o ano com déficit superior aos R$ 100 bilhões apontados como “meta informal” por Haddad no início do ano – quadro agravado com a autorização para o pagamento de um estoque de precatórios de R$ 93,1 bilhões.

Embora o ministro tenha conseguido manter a meta de equilíbrio fiscal em 2024, é difícil encontrar no mercado quem acredite que o objetivo seja cumprido. A última edição do relatório Focus, divulgado pelo Banco Central, mostra que a mediana das projeções dos economistas consultados é de um déficit primário de 0,8% do Produto Interno Bruto (PIB). A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, estima que o governo central só vai alcançar déficit primário zero em 2032.

“Na agenda econômica, o governo tem uma promessa ainda não cumprida de enfrentar o desafio fiscal. Por outro lado, a gestão atual não reproduz um descalabro nas contas públicas”, observa o cientista político Eduardo Grin, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV).

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Apesar de ter conseguido aprovar boa parte de sua agenda no Congresso Nacional, Haddad viu algumas medidas desidratarem durante a tramitação – o que comprometeu o ganho de receita inicialmente estimado.

Além disso, o ano marcou a aprovação de pautas-bomba, sendo a mais expressiva no apagar das luzes do ano legislativo: a prorrogação da desoneração da folha de salários concedida a 17 setores econômicos até 2027 e a redução da contribuição previdenciária de municípios que não possuem regimes próprios com até 156 mil habitantes. Medida com impacto estimado em mais de R$ 20 bilhões aos cofres públicos em um ano, que chegou a ser vetada por Lula, mas acabou mantida pelos parlamentares.

As ações levaram Haddad a lançar, na última quinta-feira (29), mais um pacote fiscal para recompor receitas, que aplica um novo desenho para as desonerações, revisa benefícios fiscais concedidos a empresas do setor de serviços e limita o montante oriundo de compensação tributária para empresas com decisões judiciais em um ano. Medidas que já geraram desconforto no Congresso Nacional e exigirão negociações.

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Os riscos fiscais, contudo, não vêm apenas de fora do Poder Executivo. O primeiro ano do Lula III também marcou uma queda de braço entre duas alas, representadas, de um lado, por Haddad, e de outro, pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT). Enquanto o primeiro batalhou pela manutenção do objetivo de zerar o déficit primário em 2024, o segundo passou a defender uma flexibilização da meta, alertando para riscos de possíveis cortes no Orçamento e o comprometimento de políticas públicas.

A disputa ganhou novos contornos com falas de Lula indicando que a meta de zerar o déficit dificilmente será alcançada em 2024 e minimizando o efeito de eventual desequilíbrio nas contas públicas. As manifestações de indisposição do presidente em contingenciar despesas indicam um conflito contratado – mesmo com a redução do teto permitido para bloqueios, aprovada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

Se Haddad atravessou o Natal feliz com as conquistas de um ano duro, agora ele precisará se preocupar com a Páscoa, conforme alerta o analista político Thomas Traumann. “A partir de 20 de março, com a divulgação do relatório de receitas e despesas, vai se ampliar ferozmente a pressão do PT para que o presidente cancele o arcabouço fiscal, não faça contingenciamento e aumente o déficit para 1% do PIB”, diz.

Em contraste com o fogo amigo na base, o início da política de afrouxamento monetário do Banco Central distensionou uma relação conturbada entre Lula e o presidente da autarquia, Roberto Campos Neto. Nos primeiros meses de governo, Lula não economizou as críticas à gestão do órgão, apontou diversas vezes vínculos entre Campos Neto e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e questionou a lei que conferiu autonomia ao BC. Mas com o início dos cortes na Selic e 4 indicações já feitas para diretorias da instituição, os ânimos se acalmaram. Turbulências, porém, não estão descartadas, dependendo da influência do quadro fiscal sobre o ritmo do afrouxamento.

Do lado dos indicadores econômicos, o sabor é de vitória para o governo. Em 6 janeiro, a aposta de economistas do mercado era que o PIB cresceria 0,78% no ano, a inflação medida pelo IPCA acumularia alta de 5,36% e a Selic ficaria em 12,25%, segundo o relatório Focus. Agora, as projeções estão em 2,92% de crescimento econômico, inflação a 4,46% e os juros caíram para 11,75%.

E a cereja do bolo ficou com a promulgação da Emenda Constitucional da reforma tributária dos impostos sobre o consumo. Após três décadas de discussão, o país aprovou um texto que tem por objetivo simplificar seu sistema tributário, eliminar distorções setoriais e federativas e reduzir o volume de contenciosos jurídicos e administrativos.

Interlocução com os Poderes

No caldo da política doméstica, os atos de vandalismo protagonizados em 8 de janeiro por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) trouxeram a necessidade de o governo recém-empossado buscar um esforço conjunto e alinhar o discurso com representantes de outros Poderes pela defesa da democracia. O episódio também trouxe a oportunidade de um maior alinhamento entre Executivo, Legislativo e Judiciário.

Para o próximo ano, não faltam obstáculos políticos no caminho de Lula e seus ministros. Em 2023, o Congresso impôs dificuldades à governabilidade em um ambiente muito mais polarizado e conservador, em comparação com o primeiro mandato de Lula, iniciado em 2003. Somadas a isso, mudanças de regras institucionais, como a aprovação do orçamento impositivo, em 2019, diminuíram o poder de barganha do presidente.

Consciente de seu tamanho na configuração do Congresso Nacional que saiu das urnas, o governo Lula evitou ruídos e apoiou a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara dos Deputados e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) no Senado Federal. No primeiro caso, o movimento contrastou com a proximidade construída por Lira com Jair Bolsonaro, inclusive com campanha ao então mandatário nas eleições de 2022.

Tal apoio não evitou tropeços ao longo do ano legislativo. Durante a tramitação de diversas matérias de interesse do governo, não foram poucas as vezes que Lira se queixou da falta de diálogo com os operadores políticos do Palácio do Planalto e com o descumprimento de acordos celebrados. Um dos pontos altos de tensão nas relações ocorreu durante votação da medida provisória que criava um novo arranjo ministerial para o Poder Executivo. O texto terminou aprovado no limite do prazo para caducar e com alterações importantes em relação à versão defendida pelo governo.

As relações começaram a melhorar com um investimento maior no diálogo, e, principalmente, a concessão de novos espaços na administração pública − com destaque para a nomeação do deputado André Fufuca (PP-MA) no Ministério do Esporte e do deputado Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) no Ministério dos Portos e Aeroportos e o deslocamento de Márcio França (PSB-SP) para a nova pasta do Empreendedorismo, além da substituição de Rita Serrano por Antônio Vieira Fernandes, aliado de Arthur Lira, no comando da Caixa Econômica Federal.

Como forma de atender as demandas do União Brasil, partido nascido da fusão entre PSL e Democratas, e que não se via contemplado pelo governo, Lula decidiu promover uma troca no ministério do Turismo. A deputada fluminense Daniela Carneiro, que estava em relação litigiosa com a sigla, deu lugar a Celso Sabino (PA). Carneiro havia sido indicada para a pasta como indicação pessoal de Lula. Conhecida como Dani do Waguinho no meio político, a parlamentar é esposa do prefeito de Belford Roxo (RJ), cujo apoio o petista considerou imprescindível para reduzir a vantagem de Jair Bolsonaro (PL) junto ao eleitorado fluminense no segundo turno das eleições.

A liberação de recursos para emendas parlamentares em votações de interesse do governo também ajudaram na conquista de apoio necessário no parlamento. Para 2024, porém, o Palácio do Planalto terá menor margem de manobra para liberar os recursos, já que os congressistas aprovaram um cronograma na lei orçamentária.

Ainda que tenha encontrado concordância em pautas como a nova regra fiscal e a reforma tributária, o governo sofreu derrotas ao tentar alterar pontos do Marco do Saneamento (Lei n.º 14.026/2020), e assistiu aos parlamentares aprovarem, nas duas casas, o marco temporal das terras indígenas. Segundo Eduardo Grin, a musculatura adquirida pelo Congresso desde 2015, quando a gestão de Eduardo Cunha aprovou o instrumento das emendas individuais, tem feito com que o apoio dos congressistas ficasse mais “caro” ao longo dos anos.

“Se o governo tem, de fato, a intenção de enfrentar o déficit público em 2024, não me parece que haja unidade em torno deste objetivo, o que por si só já é uma dificuldade para conseguir a aprovação de medidas que dependem do Legislativo. Ao mesmo tempo, o Congresso está muito fortalecido e tem mais condições de impor derrotas ao Executivo do que em outros tempos”, complementou Grin.

No Senado Federal, a aprovação da PEC 8/2021, que limita as decisões monocráticas de ministros do Supremo Tribunal Federal, apoiada pelo presidente Rodrigo Pacheco, aprofundou a tensão do Legislativo com o Judiciário, que reagiu quase que instantaneamente, com declarações de repúdio do presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, e dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.

Antes disso, parlamentares das bancadas ruralista, evangélica e católica já se queixavam da sentença que tornou inconstitucional o marco temporal de terras indígenas, e o encaminhamento, por parte dos magistrados, de questões envolvendo a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação e o porte de drogas.

Ao longo do ano, Lula indicou dois ministros para a Suprema Corte. Cristiano Zanin assumiu no lugar de Ricardo Lewandowski, e Flávio Dino recebeu a responsabilidade de substituir a ministra Rosa Weber, o que se espera que garanta mais fluidez na comunicação entre Executivo e Judiciário.

Política externa

O cenário internacional enfrentado por Lula em seu novo mandato é distinto ao de seus dois primeiros, com um nível maior de imprevisibilidade e circunstâncias adversas provocadas por duas guerras − a primeira, entre Rússia e Ucrânia, iniciada com a invasão russa em fevereiro de 2022, e a segunda entre Israel e Hamas, que eclodiu com os ataques realizados pelo grupo terrorista em território israelense, em outubro − em um contexto de nova correlação de forças entre os atores internacionais e enfraquecimento de organismos como a ONU.

Em ambos os casos, Lula polemizou. O presidente brasileiro chegou a culpar o lado ucraniano pela guerra provocada pela invasão russa, e também causou ruídos em um outro momento, ao equiparar a resposta israelense ao Hamas como um ato terrorista.

Neste primeiro ano de mandato de Lula, o Brasil assumiu a presidência rotativa do Mercosul, do Conselho de Segurança da ONU, e também do G20. Após encontro na África do Sul, o BRICS, que compreende outra esfera de atuação brasileira, e que começou como fórum de cooperação com Índia, China, Rússia e África do Sul, deverá ser expandido em 2024, e passará a contar com 11 nações ao todo.

“Lula retoma a sua agenda de política externa que caracterizou seus dois primeiros mandatos, apostando nas relações multilaterais (em detrimento das relações bilaterais, que foram o foco do governo anterior), destacando a importância dos organismos internacionais e buscando uma reconfiguração de poder e posicionando o Brasil como um país estratégico nesses foros. Retoma-se o Mercosul e seu propósito inicial, visando o estreitamento e a cooperação entre os países do Cone Sul; o BRICS é revitalizado e passa a ter uma agenda mais assertiva. Com isso, objetiva-se colocar em prática as premissas que historicamente orientaram o corpo diplomático brasileiro − o pragmatismo responsável, rompendo com alinhamentos preferenciais”, ponderou Ariane Roder, cientista política do Coppead/UFRJ e especialista em Relações Internacionais.