“Blusinhas”, bicicletas e petróleo: os “jabutis” do Congresso na pauta de Alckmin

Texto original tinha cerca de 17 páginas de legislação e saiu da Câmara dos Deputados com o triplo do tamanho; Senado ameaça derrubar "matérias estranhas" e gera crise com Arthur Lira

Marcos Mortari

O vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que também comanda o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços - MDIC (Foto: Edu Andrade/ Ascom/ MF)
O vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que também comanda o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços - MDIC (Foto: Edu Andrade/ Ascom/ MF)

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O plenário do Senado Federal deve retomar, nesta quarta-feira (5), a discussão e possível votação do projeto de lei (PL 914/2024) que institui o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), após ser adiada por divergências entre os parlamentares em relação ao parecer apresentado pelo relator, senador Rodrigo Cunha (Podemos-AL).

A proposição, de autoria do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sofreu modificações ao longo de sua tramitação no Congresso Nacional − com a inclusão de “jabutis” (jargão político usado para se referir a matérias estranhas ao assunto principal de um projeto de lei), como a taxação de compras internacionais abaixo de US$ 50,00, a exigência do uso de conteúdo local na exploração e no escoamento de petróleo e gás e um incentivo tributário à produção nacional de bicicletas.

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A matéria é considerada estratégica para a chamada “neoindustrialização”, vocalizada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que também comanda o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

O texto repete pontos de medida provisória (MPV 1205/2023) que perdeu validade no fim de maio e prevê incentivos financeiros de R$ 19,3 bilhões em 5 anos e redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para estimular a pesquisa e o desenvolvimento de soluções tecnológicas e a produção de veículos com menor emissão de gases do efeito estufa. Os estímulos têm sido apontados pelo setor como um dos motivos para os anúncios de investimentos feitos pela indústria automotiva, na casa de R$ 130 bilhões para os próximos anos.

A matéria fala em “apoiar o desenvolvimento tecnológico, a competitividade global, a integração nas cadeias globais de valor, a descarbonização, o alinhamento a uma economia de baixo carbono no ecossistema produtivo e inovativo” relacionado à produção de veículos leves e pesados, além de autopeças, avançando nas agendas lançadas pelos programas Inovar Auto, de 2012, e Rota 2030, de 6 anos atrás.

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Pelo projeto original, o Poder Executivo será responsável por estabelecer requisitos obrigatórios para a comercialização de veículos novos produzidos no país e importados, levando em consideração 4 eixos principais: 1) eficiência energética veicular, tanto no ciclo “do tanque à roda” (ou seja, emissões associadas à operação de veículos leves e pesados em um ciclo de uso padronizado) quanto de emissão de dióxido de carbono no ciclo “do poço à roda” (ou seja, emissões que se originam desde a fase de extração de recursos naturais, passando pela produção e pela distribuição da fonte energética, até seu uso em veículos); 2) reciclabilidade veicular; 3) rotulagem veicular integrada; e 4) desempenho estrutural e tecnologias assistivas à direção.

Também há previsão de exigências relacionadas à pegada de carbono do produto, a partir de 2027, no ciclo “do berço ao túmulo” (ou seja, as emissões de gases estufa “do berço à roda”, acrescidas daquelas geradas desde a extração de recursos e na fabricação de autopeças, na montagem e no descarte dos veículos) e a possibilidade de definição de metas por escopo.

No caso de descumprimento das metas ou importação ou comercialização de veículos sem ato de registro de compromissos validado pelo MDIC, são previstas multas compensatórias, a serem pagas na forma de investimentos, no País, em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação em programas prioritários de apoio ao desenvolvimento industrial e tecnológico para o setor automotivo e sua cadeia.

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Do lado da tributação pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o texto prevê a adoção de metodologia de “bônus e malus”, de acordo com as externalidades negativas ou positivas dos veículos leves, que também deverá considerar a fonte de energia e tecnologia de propulsão, a potência do veículo e a pegada de carbono. Veículos que receberem o selo sustentável poderão ter alíquota diferenciada de IPI.

Para terem acesso aos incentivos do programa Mover, as empresas devem estar habilitadas pelo MDIC e aplicar percentuais mínimos da receita bruta com bens e serviços automotivos na pesquisa e no desenvolvimento de soluções alinhadas à descarbonização e à incorporação de tecnologias assistivas nos veículos. Tanto a incidência de IPI quanto as regras para habilitação de projetos para acessar os incentivos financeiros já foram abordados por dispositivos infralegais editados pelo Poder Executivo.

Mudanças e “jabutis”

Ao longo da tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto de lei sofreu uma série de modificações, saindo de 17 páginas de legislação em sua versão original para 47 no parecer final do relator, deputado Átila Lira (PP-PI). Alguns dos pontos inseridos, no entanto, tratam de matérias alheias à pauta da inovação em mobilidade e da redução nas emissões de gases estufa pelo setor automotivo e têm gerado polêmica.

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Um deles inclui cobrança de 20% de Imposto de Importação sobre compras internacionais de pessoas físicas abaixo de US$ 50,00 − hoje isentas. O movimento atende parcialmente a pressão do setor produtivo nacional, que alega perda de competitividade com uma alegada vantagem injustificada de gigantes do e-commerce internacional (como Shein, AliExpress e Shopee). Uma das envolvidas na discussão, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) reconheceu a importância do movimento, mas disse que ele “ainda é insuficiente para evitar a concorrência desleal”. Posição similar foi manifestada pelo Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) e pela Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX).

Inicialmente, o parecer de Átila Lira propunha acabar com a isenção das compras internacionais naquela faixa de preço, equiparando-as a outras situações de importação (que têm alíquota de 60%, limitados ao valor máximo de US$ 3.000,00), o que levaria a alíquota efetiva a 90% (considerando os 17% já cobrados de ICMS pelos estados). Mas a resistência de parte da ala política do governo e do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), receosos com os impactos da iniciativa sobre a popularidade e as relações com a China, levou a negociações por uma versão mais moderada. Depois da aprovação, Lula se comprometeu a não vetar o trecho.

Outro “jabuti” incorporado ao texto votado pelos deputados trata da exigência de conteúdo local para as atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural nos regimes de concessão e partilha.

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Hoje já há exigências impostas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia, mas a emenda aprovada pelos parlamentares coloca em lei tal obrigação nos contratos assinados até 2040 e diferencia os percentuais exigidos de bens e serviços. Por exemplo, na fase de exploração é exigido conteúdo local global de 20%. Já na etapa de construção de poço (uma das fases enquadradas na etapa de desenvolvimento), o conteúdo local mínimo é de 30%, sendo 25% de bens e 5% de serviços.

A versão aprovada pela Câmara dos Deputados também incluiu um “regime especial de incentivo à mobilidade verde”, com foco na produção e uso de bicicletas com e sem câmbio e de bicicletas elétricas. O dispositivo, que sozinho ocupa mais de 6 páginas do texto, prevê redução gradual de cobrança do IPI, com o objetivo de incentivar a produção nacional de bicicletas. O desconto pode chegar a 100% se cumpridas todas as etapas, da fabricação do garfo, guidão e aros das rodas à pintura e montagem final do produto.

Impasse no Senado

O projeto foi objeto de novos embates durante sua tramitação no Senado Federal. A votação da matéria foi suspensa ontem (4) em meio a divergências após o relator do texto na casa legislativa, senador Rodrigo Cunha (Podemos-AL), apresentar parecer excluindo a taxação das compras internacionais até US$ 50,00 − que ficou conhecida popularmente como o imposto sobre as “blusinhas”, devido ao elevado volume de peças de vestuário por brasileiros nos sites de comércio eletrônico estrangeiros.

O tema deflagrou uma nova crise entre o Palácio do Planalto e a Câmara dos Deputados. Em meio ao risco de o dispositivo cair do texto, o presidente da casa legislativa, Arthur Lira (PP-AL), ameaçou não colocar o projeto em votação (o texto precisará passar por nova apreciação dos deputados caso os senadores modifiquem a versão aprovada na casa iniciadora) se o governo não cumprir o acordo de levá-lo à sanção.

O relator no senado, Rodrigo Cunha, também retirou de seu parecer a exigência do uso de conteúdo local na exploração e no escoamento de petróleo e o trecho que dispunha do incentivo fiscal de IPI à produção de bicicletas, sob a alegação de riscos de perda de vantagem competitiva da Zona Franca de Manaus (ZFM).

A expectativa é que a votação do projeto de lei seja retomada nesta quarta-feira (5), em sessão plenária marcada para as 14h (horário de Brasília). Caso o texto seja aprovado com modificações em relação à versão encaminhada pelos deputados, ela precisará passar por nova análise da Câmara antes de seguir à sanção presidencial.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.