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Bernard Appy vê entraves superáveis com setor de serviços e Estados e diz que reforma tributária não avançou por falta de empenho do governo Bolsonaro

Economista fala em aumento de até 20% no PIB potencial do Brasil em 15 anos com aprovação de PEC e defende correção de distorções a partir do IR

Marcos Mortari

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Um dos maiores especialistas em reforma tributária no Brasil, o economista Bernard Appy está otimista com as perspectivas para o avanço do debate durante o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em entrevista concedida ao InfoMoney na última segunda-feira (12) − portanto, um dia antes de ser confirmado pelo futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como o secretário especial para o assunto na pasta − Appy disse que boa parte das resistências federativas e setoriais estão superadas nas últimas versões dos pareceres elaborados pelos relatores das PECs 45 e 110 no Congresso Nacional.

Para ele, os textos só não foram aprovados na atual legislatura por “falta de empenho” do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Na avaliação do especialista, o ministro Paulo Guedes (Economia) fez uma leitura equivocada da demanda de governadores por compensações oriundas de uma mudança de regime e interditou o debate.

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“O tema estava maduro, em função do avanço da discussão técnica na construção de um modelo que mitiga muito as resistências. Neste governo não avançou basicamente porque ele não quis colocar capital político para aprovar a reforma”, disse.

Appy, que desde 2015 atua como diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), think tank dedicado aos debates tributário e de gestão fiscal do país, é o idealizador de uma das propostas em discussão na Câmara dos Deputados.

A PEC 45/2019, assinada pelo deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP), presidente do MDB, poderia aumentar em 20% o Produto Interno Bruto (PIB) potencial brasileiro em 15 anos, de acordo com estudos citados pelo especialista.

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O texto propõe a extinção de uma série de tributos e a consolidação das bases tributáveis que incidem sobre a produção e a comercialização de bens e a prestação de serviços. A ideia é criar um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), nos moldes de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), cobrado na maioria dos países desenvolvidos. O novo tributo substituiria cinco tributos, sendo três federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e outro municipal (ISS).

A ideia é que o tributo seja federal, instituído por lei complementar, com possibilidade de fixação de alíquotas por parte de estados e municípios por seus respectivos percentuais (“sub-alíquotas”), desde que a mesma para todos os bens e serviços. Não há permissão para a concessão de benefícios fiscais a setores específicos. Há possibilidade de devolução do imposto recolhido a contribuintes de baixa renda.

Além do IBS, a proposta estabelece um imposto de índole extrafiscal, sobre produtos, serviços ou direitos com externalidade negativas, com o objetivo de desestimular o consumo. Seria o caso de cigarros e bebidas alcoólicas, por exemplo. Mas na PEC não são listados quais produtos ou serviços seriam afetados. A lista deverá ser definida por lei ou medida provisória posterior.

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Na avaliação de Appy, a proposta também tem condições de aumentar a progressividade do sistema tributário brasileiro − ou seja, fazer com que ricos paguem proporcionalmente mais impostos do que pobres. Mas o especialista defende que o debate sobre a tributação sobre o consumo precisa caminhar de mãos dadas com outra discussão sobre a cobrança de impostos sobre a renda.

Durante a entrevista, ele defendeu uma redução da cobrança de tributos para empresas e a instituição de uma taxação sobre a distribuição, que na maioria ocorre na forma de dividendos. “Do ponto de vista distributivo, faz sentido fazer uma mudança para reduzir a alíquota da empresa e passar a tributar a distribuição”, disse.

Em relação à questão fiscal, disse não ter preferência entre os modelos em discussão, mas reiterou a importância de o novo governo sinalizar aos agentes econômicos de que haverá uma trajetória sustentável para a dívida pública.

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“Se não houver essa percepção, os efeitos são bastante ruins, na forma de desajuste do câmbio, aumento da taxa de inflação, aumento de juros de longo prazo – o que no fim acaba tendo efeito negativo sobre o crescimento da economia”, argumentou.

Bernard Appy é economista, formado pela Universidade de São Paulo. Foi Secretário Executivo e de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2009), durante boa parte do governo Lula. Já presidiu o Conselho de Administração do Banco do Brasil e o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). No setor privado, foi sócio-diretor da LCA Consultores (1995-2002 e 2012-2014) e diretor de estratégia e planejamento da antiga BM&FBovespa, atual B3 (2009-2011).

Veja os destaques da entrevista:

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InfoMoney: O debate sobre uma reforma tributária chegou a avançar nos últimos anos, mas não o suficiente para a aprovação de uma das propostas em tramitação no Congresso Nacional. Qual é o seu diagnóstico sobre os entraves à matéria?

Bernard Appy: Quando falamos de reforma tributária, estamos falando sobre pelo menos dois temas diferentes. Um deles é a reforma dos tributos indiretos, que incidem sobre a produção e o consumo de bens e serviços: PIS, Cofins e IPI, que são federais; ICMS, estadual; e ISS, municipal. Outro tema é a reforma da tributação da renda, eventualmente discutida com a tributação da folha de pagamentos.

A reforma da tributação sobre o consumo é algo que discutimos no Brasil desde a constituinte. Houve um avanço importante nos últimos anos. Temos duas PECs cuja discussão avançou bastante no Congresso Nacional (a PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados, e a PEC 110/2019, no Senado Federal).

E o motivo pelo qual não avançou [o suficiente para ser aprovado], se olharmos historicamente, é muito por conta da questão federativa. Sempre houve resistência de Estados importantes na discussão. No período mais recente, ela foi, em boa medida, superada. Hoje, todos estão apoiando uma reforma ampla, que substitua os tributos atuais por um ou dois impostos sobre o valor adicionado − seja um único federal, estadual e municipal, ou um que federal e outro estadual e municipal. Temos apoio de todos os Estados e dos pequenos e médios municípios. Ainda existe uma resistência dos grandes municípios.

O tema estava maduro, em função do avanço da discussão técnica na construção de um modelo que mitiga muito as resistências. Neste governo não avançou basicamente porque ele não quis colocar capital político para aprovar a reforma. O principal fator pelo qual não avançou, pelo menos nesses últimos quatro anos, foi a falta de empenho do governo. Se o governo tivesse colocado capital político para aprovar a reforma da tributação do consumo nos últimos quatro anos, teria aprovado. A expectativa é que o próximo faça.

Já a reforma do Imposto de Renda é um tema mais recente do debate nacional, que vem amadurecendo. O governo mandou um projeto (PL 2337/2021), que foi aprovado na Câmara dos Deputados e está parado no Senado Federal. Mas o texto aprovado é muito ruim, não é uma boa base. Neste caso, houve pouca discussão, ao menos na Câmara dos Deputados teve um avanço muito rápido, mas saiu um texto com muitos problemas. Este é outro tema que acho que vai ser retomado no próximo governo.

IM: O senhor poderia explicar em linhas gerais as duas principais propostas em tramitação no Congresso Nacional?

BA: Certamente temos o pior sistema de tributação de bens e serviços do mundo hoje em dia. As duas propostas [em discussão no Congresso Nacional] têm como objetivo substituir os tributos atuais, que são muito ruins, por um sistema que se aproxima do melhor padrão internacional, que é um bom imposto sobre o valor adicionado, imposto de fase ampla, que pega mercadorias, serviços intangíveis. É um tributo totalmente não cumulativo, que tem as regras mais homogêneas possíveis, é cobrado no destino, idealmente com uma única alíquota. Este é um bom IVA. Este é o ideal. Inclusive, dos IVAs criados nos últimos 30 anos, a grande maioria tem apenas uma alíquota positiva. Os IVAs mais antigos, como os da Europa, têm três ou quatro alíquotas.

Este é o ponto de chegada, que, na verdade, não tem nada de original. É simplesmente tentar trazer para o melhor padrão internacional. O que há na PEC 45 e na PEC 110 é como permitir a migração para este modelo partindo do sistema atual, que é extremamente distorcido e cheio de tratamentos diferenciados para setores, empresas, regiões, diferenciados em função da guerra fiscal.

No caso da PEC 45, propõe-se a substituição destes 5 tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) por um imposto sobre valor adicionado, que chamamos de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), além de um Imposto Seletivo, que é regulatório para tributar aquilo que tem efeito negativo sobre saúde e meio ambiente, como fumos, bebidas alcoólicas e eventualmente combustíveis fósseis.

A PEC 110 adota o mesmo modelo, mas, em vez de um único imposto, teria um IVA dual, com uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) federal e outra que seria estadual e municipal, além do imposto seletivo.

O modelo [nos dois casos] fica de pé por conta de duas transições: uma para os contribuintes e a economia como um todo, que, na última versão da PEC 45, seriam dois anos de teste e quatro de transição. E, na última versão da PEC 110, seriam dois anos de teste e cinco de transição. Durante esse período, há uma redução das alíquotas dos tributos atuais e a elevação dos novos tributos.

E há uma segunda transição, que não tem importância para o contribuinte. É uma transição na distribuição da receita entre Estados e municípios.

Essas transições são importantes, porque há mudanças de preços relativos. Há alguns preços e serviços cuja tributação vai cair e outros que vai aumentar. No agregado, é tudo calibrado para manter a carga tributária. E é importante que isso não seja feito de forma muito traumática.

Há uma série de investimentos que já foram feitos com base no sistema tributário atual. Para não ter um impacto muito abrupto sobre as empresas, existe a transição, que permite que elas recuperem os investimentos feitos, mas que os novos ela passe a fazer com base no novo sistema tributário, muito mais eficiente e menos distorcido.

IM: Um dos alegados entraves para a proposta foi o pedido de compensação solicitado por Estados e municípios a partir de um fundo, cuja cifra superava os R$ 400 bilhões. O ministro Paulo Guedes (Economia) dizia que o montante era muito elevado e não havia espaço fiscal para realizar tal movimento. Qual é sua avaliação? Há espaço para construção de algum acordo?

BA: Um dos problemas que aparecem na discussão tributária é que os Estados veem a concessão de benefícios fiscais como uma forma de política de desenvolvimento estadual. É uma forma extremamente ineficiente, porque todos os Estados dão benefícios − e um Estado não dá benefício para explorar sua vocação, mas sim para “roubar” uma empresa que tem vocação para ir para outro. Temos um problema sério. Estamos com a estrutura produtiva mal localizada no país. É uma forma ineficiente.

Nas negociações da reforma tributária, apareceu a necessidade de trocar a forma de fazer política de desenvolvimento regional. Em vez de ser via benefícios fiscais, isso pode ser feito através da alocação de recursos orçamentários através de um fundo de desenvolvimento regional.

O [ministro] Paulo Guedes dizia que esse fundo custaria R$ 400/500 bilhões e que isso era impossível de aprovar. Na verdade, os Estados entraram na negociação pedindo um valor absurdamente elevado para esse fundo, que era crescente no tempo e chegava a R$ 100 bilhões por ano, mas no fundo queriam muito menos. O necessário para fechar o acordo está muito mais perto de R$ 20 bilhões.

Guedes pegou o número que os Estados apresentaram como base para a discussão e se posicionou contra. Mas o fato é que esse ponto já está superado. Na negociação da PEC 110 no Senado, os Estados concordaram em eles mesmos financiarem o fundo de desenvolvimento regional. Portanto, com recursos do próprio IBS, que seria o imposto de estados e municípios.

Há um pouco de confusão no número. Ele é resultado, sim, de um valor que foi pedido completamente fora da realidade, mas o que há de fato na mesa hoje é uma situação bem mais tranquila.

IM: Há também resistência do setor de serviços às propostas em discussão. A percepção geral, a despeito da diversidade do grupo, é que haveria um aumento de carga tributária neste caso. O que é possível fazer de concessão para reduzir o impacto potencial sobre o setor, ainda que o senhor muitas vezes alegue que há um problema de comunicação?

BA: Primeiro, é preciso entender o que é setor de serviços. Nas contas nacionais, dizem que serviços respondem por 73% do PIB, mas isso inclui administração pública, que não é afetada pela reforma tributária. O número também inclui o setor de comércio, mas ele paga ICMS, e não ISS, que é o tributo do setor de serviços. Há, inclusive, coisas que não são de mercado. Um item nas contas nacionais se chama “aluguel imputado”, valor que entra nas contas referente ao aluguel da própria casa. Tudo isso entra no setor de serviços e leva a esse percentual muito alto. O setor de serviços, de fato, é menor.

Segundo, dentro deste setor menor de serviços, uma parte muito importante são serviços prestados a empresas. Este grupo não será prejudicado pela reforma tributária, porque hoje paga ISS, por exemplo, mas não dão crédito para o tomador do serviço, pagam PIS/Cofins muitas vezes pelo regime cumulativo e não dão crédito. Na proposta, que prevê alíquota uniforme para bens e serviços, eles até pagariam uma alíquota mais alta, mas vão dar um crédito integral do imposto ao tomador. Então, na verdade, entre o que o prestador de serviço paga e o tomador recupera na forma de crédito de imposto. Haveria uma redução de carga tributária em relação à situação atual, que é a eliminação da cumulatividade.

No fundo, portanto, estamos falando só de serviços prestados ao consumidor final. Neste caso, de fato, a maior parte hoje é menos tributada do que mercadorias vendidas para consumidores finais. Na proposta de alíquota uniforme, haveria, sim, um aumento da carga sobre serviços e redução sobre mercadorias.

A questão que entra é: isso está correto ou está incorreto? Quando analisamos o padrão de consumo das famílias, descobrimos que famílias ricas consomem muito mais serviços do que famílias pobres. Então, quando tributamos menos o consumo de serviços do que o consumo de mercadorias, estamos tributando menos o rico do que o pobre. Corrigir isso está errado ou correto? Essa é a pergunta que tem que ser feita do ponto de vista político para avaliação da reforma tributária.

Ainda assim, há uma tendência na tramitação no Congresso que alguns serviços, como educação e saúde privados, tenham algum tratamento diferenciado. Isso apareceu na discussão da PEC 45, no relatório que foi apresentado na comissão mista. E também no debate sobre a PEC 110, no Senado Federal. Mas não é todo serviço.

Em muitos casos, as pessoas acham que pagam muito menos imposto do que pagam. Por exemplo, um serviço que é intensivo em equipamentos, como uma academia de ginástica. Como serviço, é menos tributado, mas compra uma série de equipamentos que são muito tributados. Com o crédito integral desses equipamentos e refazendo as contas, descobrimos que, na verdade, ele não vai pagar mais imposto com a adoção de uma alíquota uniforme.

Então, há um trabalho muito grande de comunicação para desfazer o mito de que o setor de serviços vai ser prejudicado. Primeiro, é uma parcela muito pequena, só o grupo de serviços prestados para o consumidor final. Segundo, para uma parte desses serviços (educação e saúde), a tendência é ter um tratamento diferenciado. Terceiro, uma boa parte desses serviços é prestado por empresas do Simples [Nacional], que não vão ser afetadas pela reforma tributária. Portanto, a grande maioria dos serviços prestados ao consumidor final não vai ser afetada.

IM: Qual a dimensão do impacto desta reforma sobre a economia brasileira? Quanto o país pode crescer a mais se adotar essas mudanças?

BA: Quando você faz uma reforma tributária na linha das PECs 45 ou 110, em que se substitui tributos cheios de distorções, alíquotas, benefícios fiscais e regimes especiais, por um imposto homogêneo, sem cumulatividade plena e cobrado no destino, resolve-se um monte de problemas.

Resolve-se o problema da complexidade − que resulta em um custo burocrático de pagar imposto, que no Brasil é muito maior do que no resto do mundo. Resolve-se uma parte do problema da litigiosidade, que provavelmente no Brasil também é a mais alta do mundo − não só por conta disso, mas da complexidade do sistema. E litigiosidade não só é custo para as empresas, como gera insegurança jurídica, o que prejudica o investimento. Portanto, a redução da complexidade tem um efeito positivo sobre o crescimento.

A reforma tributária também elimina a cumulatividade, que é um imposto pago ao longo da cadeia, não recuperado e que acaba onerando investimentos e exportações. Na verdade, tem-se o efeito de reduzir o custo do investimento e aumentar a taxa de investimentos, aumentando a competitividade da economia brasileira. Isso tem um efeito positivo sobre a taxa de crescimento.

Por fim, a reforma elimina o que chamamos de distorções alocativas, que é quando se aloca capital e trabalho no setor, lugar ou forma de produção que é menos produtiva por conta das distorções do sistema. Um exemplo clássico é a montagem de um centro de distribuição não onde o custo de logística é menor, mas onde o benefício tributário é maior.

Quando corrigimos isso, temos um efeito muito positivo sobre o potencial de crescimento da economia. Alguns estudos estimam apenas uma parte desses efeitos. Deles, o que projeta o menor impacto sobre o crescimento aponta 4% do PIB em um horizonte de médio prazo, de 10 ou 15 anos. E o que tem o maior efeito (o único estudo que estima todos os efeitos), prevê aumento no PIB potencial de 20 pontos percentuais em 15 anos. Eu diria que é algo no meio disso. Talvez sejam os 20%, mas eu diria que é bem razoável dizer que o PIB vai poder crescer 10% a mais do que ele cresceria ao longo de 15 anos com uma boa reforma da tributação sobre o consumo de bens e serviços.

Simultaneamente, há efeitos positivos do ponto de vista distributivo e federativo. Do lado distributivo, porque a mera adoção de uma alíquota uniforme para bens e serviços melhora a tributação. Hoje rico paga menos do que pobre, mesmo com a desoneração da cesta básica. Quando se equaliza, isso melhora a distribuição de renda. Além disso, as propostas [em discussão no parlamento] preveem um sistema de devolução de uma parte do imposto para as famílias de baixa renda − o que teria um efeito mais favorável. O governo arrecada e, em vez de baixar a alíquota, devolve o dinheiro às famílias de baixa renda. Do ponto de vista distributivo, é muito mais eficiente.

Há também um efeito federativo positivo, porque os Estados que mais ganham quando se adota o princípio do destino são exatamente os mais pobres da federação. Isso significa que, em transações entre jurisdições, o imposto pertence à jurisdição do destino.

IM: Ainda que as propostas sobre o consumo tragam mais progressividade ao sistema, são outros flancos do debate tributário que atacam mais o problema. É o caso de renda e folha de pagamentos. O que é possível fazer no início do próximo governo neste campo?

BA: O principal instrumento de progressividade no sistema tributário é o Imposto de Renda − sobretudo o IRPF. Temos muitas distorções no Brasil que hoje fazem com que uma parcela grande das pessoas de alta renda sejam pouco tributadas.

Em certa medida, isso tem a ver com o fato de que tributamos o lucro apenas na empresa, e não na distribuição. Um dos motivos é que, do ponto de vista econômico, a incidência não necessariamente é no acionista. Há vários estudos que mostram que a tributação do lucro na empresa pode ser repassada para o preço, pode reduzir a remuneração do acionista ou pode até resultar em menor remuneração dos trabalhadores.

O segundo fator é que há alguns casos em que a tributação na empresa é muito baixa em termos efetivos. Um exemplo claro são os regimes simplificados, como o de lucro presumido. Um profissional liberal que ganha R$ 100 mil por mês de faturamento e tem despesas de R$ 20 mil está pagando uma alíquota sobre a renda de pouco mais de 12% na média. Por que isso acontece? Porque a tributação é só na empresa e não na distribuição. O lucro da empresa é 80% do faturamento, mas o Imposto de Renda pressupõe lucro de só 32%. Então, ele está pagando imposto sobre menos da metade do lucro. Obviamente, neste caso, há uma situação de baixa tributação efetiva. E como há isenção na distribuição [de dividendos], há baixa tributação do acionista.

Por conta dos dois fatores, do ponto de vista distributivo, faz sentido fazer uma mudança para reduzir a alíquota da empresa e passar a tributar a distribuição. Há muitas formas diferentes de se fazer, com efeitos diferentes, tanto do ponto de vista de incentivo ao investimento, da eficiência econômica, como mesmo do ponto de vista distributivo. Existem países que tributam exclusivamente na fonte, outros tributam de forma integrada com o imposto de renda de pessoa física. Há aqueles que tributam uma parte do lucro junto com o imposto de renda de pessoa física. Tudo isso faz diferença.

Essa é uma discussão que há alguns anos estava muito pouco avançada, mas que avançou muito nos últimos anos, e acredito que vai ser uma pauta do próximo governo. Os detalhes [de uma proposta] desconheço − acredito que não exista ainda nenhum projeto pronto, mas, com o avanço na discussão dos últimos anos, é possível corrigir distorções distributivas mexendo no Imposto de Renda.

IM: Do ponto de vista dos dividendos e de investimentos, qual sua avaliação? A tributação sobre dividendos pode ser uma fonte de arrecadação para o governo? Há uma proposta de autoria do atual governo na mesa do Senado Federal, mas que foi criticada por partir de um patamar muito elevado de renda de contribuintes.

BA: Entendo que ter o modelo brasileiro, em que o lucro é tributado exclusivamente na empresa e os dividendos são isentos, traz vantagens e desvantagens. A principal desvantagem é do ponto de vista distributivo. Por outro lado, a redução da alíquota da empresa e a tributação da distribuição tem também vantagens e desvantagens.

Pessoalmente, entendo que o segundo modelo pode ter um efeito positivo, tanto sobre a taxa de investimento, como sobre a correção de distorções distributivas. Mas é preciso fazer bem feito.

O governo mandou, em 2021, um projeto de lei para o Congresso, que foi aprovado pela Câmara. Mas o texto que saiu de lá tem um defeito muito sério. Ele diz que empresas que faturam até R$ 4,8 milhões por ano continuam com distribuição isenta, reduzindo a alíquota da empresa. Aquele profissional do exemplo que dei, que paga pouquíssimo imposto, teria uma redução de tributação em relação à situação atual − que já é uma distorção absolutamente injustificável.

E mais: ao colocar um limite como este de R$ 4,8 milhões, não tenho nenhuma dúvida que diversas empresas vão se fragmentar para poder se beneficiar disso. Um escritório de advogados que fatura R$ 40 milhões vai virar dez empresas que faturam cada uma menos R$ 4,8 milhões só para poder não pagar o imposto na distribuição. É uma falha muito séria no texto aprovado na Câmara.

As pessoas acham que estão ajudando o pequeno empresário. Não, estão ajudando uma pessoa de alta renda que paga pouco imposto hoje, a pagar ainda menos. O que está gerando uma distorção extremamente séria e com um custo no mínimo com contador e para provar à Receita Federal que isso não é uma estrutura artificial.

Desenhos mal feitos de sistema tributário têm consequências negativas, tanto do ponto de vista distributivo, como do ponto de vista do crescimento da economia. O projeto aprovado na Câmara tem esses dois efeitos. É preciso fazer bem feito.

Com relação ao impacto sobre arrecadação, não é possível dizer, porque depende do desenho e da alíquota cobrada. No fundo, há todas as opções à mesa. O que posso dizer é que o espaço para aumentar muito a carga com isso é pequeno sem gerar efeitos negativos para o crescimento da economia e o investimento. Às vezes, as pessoas acham que vão conseguir um caminhão de dinheiro tributando a distribuição de dividendos. Não é verdade. A não ser que se queira fazer um sistema que provavelmente terá efeito negativo sobre o investimento, e, portanto, sobre o crescimento da economia. Mas, dentro de limites razoáveis, há algum espaço para aumentar um pouco ou até reduzir um pouco a carga tributária.

IM: Um debate urgente na atual transição de governo é a PEC da Transição. A versão aprovada pelo Senado garante espaço para gastos do novo governo de até R$ 168 bilhões. Mas boa parte das despesas que ocuparão o espaço têm indicações de que podem durar mais do que os dois anos previstos para a proposta. São despesas que parecem permanentes em um ambiente de demandas crescentes por políticas públicas e programas sociais, em meio a um debate sobre novo arcabouço fiscal. O caminho de um aumento de carga tributária será inevitável no Brasil? Como equacionar essas questões?

BA: Não necessariamente o espaço aberto pela PEC da Transição será totalmente ocupado por aumento de despesas. O que vai acontecer com a trajetória [da dívida pública] vai depender de vários fatores. Primeiro, existe um fator que temos pouco controle que são os preços de petróleo e commodities no mercado internacional. Nos últimos dois anos, houve um desempenho absolutamente espetacular da arrecadação por conta do aumento deles.

Mas, além deste fator (que é pouco controlável e tem que ser acompanhado, porque acaba determinando um pouco do que vai ser da política fiscal), há três instrumentos para sinalizar que a dívida pública vai ter uma trajetória de crescimento que não é explosiva. Um deles é segurar o ritmo de expansão das despesas. A PEC da Transição é um teto, não necessariamente um indicador de que tudo será gasto. O segundo é um aumento de arrecadação. E o terceiro é o próprio crescimento econômico.

No longo prazo, ter uma regra que limita a expansão de despesas, que não permite que qualquer aumento de arrecadação vire automaticamente aumento de despesa… Se a economia cresce mais, na verdade, há mais arrecadação e, se há a expansão das despesas controladas, se alcança um resultado fiscal melhor.

No fundo, o governo vai ter que trabalhar com esses três instrumentos. Qual vai ser a composição eu não sei, mas acho que é extremamente importante que exista uma sinalização de que haverá uma trajetória sustentável para a dívida pública. Isso é muito importante, porque, se não houver essa percepção, os efeitos são bastante ruins, na forma de desajuste do câmbio, aumento da taxa de inflação, aumento de juros de longo prazo − o que no fim acaba tendo efeito negativo sobre o crescimento da economia.

Como vai ser exatamente o desenho da política fiscal para poder garantir que haverá essa sustentabilidade da dívida, eu não sei. Mas espero que haja, sim, um desenho que seja visto como consistente do ponto de vista da política fiscal.

IM: Como técnico, qual é o desenho de arcabouço fiscal que mais lhe agrada?

BA: Não tenho uma única preferência. Está havendo uma discussão sobre diferentes regimes fiscais. Há várias propostas na mesa. Umas usam a dívida pública como referência, mas no fundo estabelecem um limite para a expansão das despesas, passando por uma meta intermediária de resultado primário. Outras mexem apenas no teto de gastos.

Na proposta do Tesouro [Nacional], o limite de expansão dos gastos depende do desempenho passado das contas públicas, tanto em termos de tamanho e evolução da dívida, como tamanho e evolução do resultado primário. Há outras que olham para frente.

Eu pessoalmente não tenho um desenho que seja meu preferido. Acho que é importante fazer essa discussão e avaliar os prós e contras das várias propostas colocadas hoje. Acho que a indicação de que a meta fiscal vai ter que ser fixada de forma a ter como referência uma trajetória sustentável da dívida, ainda que o instrumento imediato seja o controle da despesa, está ganhando força nesse debate.

IM: O senhor participou da elaboração de um documento, juntamente com cinco nomes relevantes do debate público nacional, com sugestões para o próximo governo. Quais medidas seriam urgentes neste momento? O que seria possível fazer nos primeiros meses da próxima gestão?

BA: Este documento, “Contribuições para um governo democrático e progressista”, foi feito por seis autores e trouxe sugestões para o próximo governo. Há uma sugestão de mudança nos programas sociais, dentre uma série de dispositivos, com uma proposta de redesenho da política de transferência de renda, que, com o montante do Auxílio Brasil, daria para fazer uma política bem mais eficiente.

Espero que o assunto avance no governo. Quero que haja um redesenho para tornar mais eficiente a política de transferência de renda. Hoje, o montante transferido independe do número de pessoas e da renda da família. Então, obviamente há um problema. Essa ideia [que apresentamos] é muito baseada em uma proposta de responsabilidade social, desenvolvida a partir de uma proposta do Centro de Debate de Políticas Públicas.

Apresentamos também uma proposta de reforma tributária, que vai muito na linha do que discutimos, que é uma reforma da tributação sobre o consumo e outra de tributação da renda, com redução da alíquota da empresa e passando a tributar a distribuição.

Há uma proposta muito importante de reforma do Estado. Não é só uma reforma administrativa, que é a reforma do RH do Estado, da gestão dos funcionários públicos. A reforma do Estado é mais ampla, que tem como objetivo tornar o gasto público mais eficiente. Uma parte é a reforma administrativa, mas outra parte é tornar o Estado mais eficiente. Isso significa entregar mais em termos de serviços públicos para a população com o menor custo. Acho extremamente importante e espero que seja pauta do próximo governo. Há coisas a serem aproveitadas no documento.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.