Aceno aos EUA, constrangimento e surpressa marcam participação de Temer na ONU

Em discurso de abertura da Assembleia-Geral, presidente tenta mostrar que Brasil virou a página do impeachment e indica maior alinhamento com Washington

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – O discurso do presidente Michel Temer durante abertura da 71ª Assembleia-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) trouxe sinalizações sobre os novos rumos da política externa brasileira com a gestão que assumiu após o impeachment de Dilma Rousseff. A percepção de que as atenções se voltarão às relações econômicas e comerciais principalmente com o norte global e um alinhamento político maior com Washington ganhou força após as palavras proferidas pelo peemedebista. Ao mesmo tempo, a manutenção de agendas antigas, como a busca por um assento permanente no Conselho de Segurança, também chamou atenção.

Para entender melhor o que se pode esperar da política externa brasileira, levando em conta as novas pistas dadas pelo discurso de Michel Temer, o InfoMoney conversou com o analista político e internacionalista, Pedro Costa Júnior, professor de Relações Internacionais e Economia das Faculdades de Campinas (FACAMP), Faculdades Integradas Rio Branco e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Embora saliente que análises retóricas têm suas limitações para a compreensão da conjuntura mundial, o professor chamou atenção para pontos importantes da fala de Temer na ONU.

Em um primeiro momento, o professor destaca três eixos previsíveis presentes no discurso do presidente: a defesa da constitucionalidade do impeachment e solidez das instituições brasileiras; a venda de uma imagem otimista com relação à recuperação do país, uma retomada de confiança dos agentes econômicos e volta do nível de investimentos; e a abertura do Brasil para parcerias internacionais. A ideia era mostrar que o Brasil já virou a página de um episódio complexo para sua vida democrática e está pronto para dar novos passos na política mundial.

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No primeiro quesito, Costa Júnior lembra da atenção dada por Temer ao que chamou de “longo processo” que contou com a participação dos poderes Legislativo e Judiciário. O peemedebista ainda destacou o papel de uma imprensa livre e instituições como o Ministério Público Federal na garantia da segurança jurídica do país. Nesse sentido, também coube uma sinalização indireta a trabalhos como a Operação Lava Jato quando se falou que o Brasil vive um momento de “depuração de seu sistema político”, o que indica também uma preocupação do presidente em dialogar com seu público doméstico, embora discursasse para os agentes internacionais.

Tais preocupações em transmitir a ideia de estabilidade em seu país contrastaram com a reação de alguns líderes da região. Os presidentes de Costa Rica, Luis Guilhermo Solís, Venezuela, Nicolás Maduro, Equador, Rafael Correa e Nicarágua, Daniel Ortega, abandonaram o plenário no momento em que o presidente brasileiro entrou para proferir o discurso de abertura da 71ª Assembleia-Geral da ONU. Outros dois líderes — Raúl Castro, de Cuba, e Evo Morales, Bolívia — nem chegaram a entrar no local. “As imagens estão circulando o mundo. E não foi apenas [uma ação de países] do chamado ‘eixo bolivariano’. Esse tipo de recepção não é comum”, observou o professor. Para ele, o episódio causa algum constrangimento ao governo brasileiro, assim como, em menor grau, os protestos contra o peemedebista em frente ao hotel em que se hospedou.

A agenda dos acordos comerciais também esteve presente e foi um dos destaques do presidente. Neste campo também houve uma sinalização a grupos de interesse domésticos, quando Temer criticou o protecionismo agrícola, que usa medidas sanitárias e fitossanitárias como instrumentos para tais políticas. O Brasil busca avançar em negociações com a União Europeia para exportar mais produtos agrícolas.

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As falas de Michel Temer, observa Costa Júnior, evidenciam o que se esperava de maior alinhamento político e comercial com os Estados Unidos e o norte global, em detrimento às políticas anteriores de cooperação sul-sul e desenvolvimento dos emergentes. Em sentido semelhante, o jornalista Gustavo Chacra, especialista em cobertura internacional, escreveu ontem: “as posições de Temer são praticamente idênticas às de Obama e da candidata Hillary Clinton. E são completamente opostas ao que defende o candidato republicano Donald Trump e membros da extrema direita nos EUA, na Europa e mesmo no Brasil”. Ele lembrou das falas do peemedebista sobre o crescimento da xenofobia, isolacionismo e protecionismo no mundo, dentre outras colocações.

Um dos momentos que surpreendeu o professor foi quando o peemedebista falou sobre a incapacidade de os organismos internacionais acompanharem as rápidas mudanças dos problemas mundiais, defendeu uma reforma na estrutura do Conselho de Segurança e indicou a manutenção da busca por um assento permanente como agenda brasileira. Esse foi o mote da política externa dos anos anteriores, e o governo foi muito criticado por setores internos, como o PSDB, o próprio [José] Serra. Havia um pedido por uma visão mais pragmática”. Costa Júnior chama atenção ainda para a troca da presidência do órgão com a saída de Ban Ki-moon após dez anos, o que pode representar uma oportunidade para novas investidas nessa pauta do Itamaraty, embora seu êxito não seja calculado em curto ou médio prazo.

Ao mesmo tempo, a crítica do presidente ao que chamou de “isolacionismo” internacional foi entendida pelo especialista mais como um recado às escolhas dos governos que antecedem sua gestão do que uma menção aos efeitos do “Brexit” ou ao surgimento de figuras como o candidato republicano à presidência americana, Donald Trump, na política mundial. “A visão que tentam vender é a de que o Brasil se isolou comercialmente nos anos de Lula e Celso Amorim, mas sobretudo no governo Dilma”. Pedro Costa Júnior, no entanto, não enxerga sustentação para tal narrativa. “O que chamam de isolacionismo é simplesmente o Brasil não estar alinhado com o norte”. Ele lembra outras iniciativas em nível regional via Mercosul, a criação da Unasul, a abertura de embaixadas na África e na intensificação das relações bilaterais com o continente, além do desenvolvimento dos BRICS, que hoje tendem a ser mais deixado de lado pelo governo brasileiro.

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Outro ponto sensível da participação de Michel Temer na Assembleia-Geral da ONU foi o tema dos refugiados. Disse o peemedebista em seu discurso: “refugiados e migrantes são, no mais das vezes, vítimas de violações de direitos humanos. São vítimas da pobreza, da guerra, da repressão política. (…) O Brasil é obra de imigrantes, homens e mulheres de todos os continentes. Repudiamos todas as formas de racismo, xenofobia e outras manifestações de intolerância”. Na véspera, o presidente brasileiro havia dito que o país recebeu 95 mil refugiados, número mais de dez vezes superior aos 8.800 apresentados pelo próprio Comitê Nacional para Refugiados. A alegação foi que Temer incluiu em seu cálculo 85 mil haitianos, vítimas do desastre ambiental causado pelo terremoto de 2010 – circunstâncias que não configuram refúgio nos atuais padrões da ONU.

Apesar da ressalva, a grande diferença nos números apresentados gerou incômodo, avalia o professor. Ele lembra ainda que recentes posições da atual gestão contradizem o discurso de atenção e preocupação com os refugiados pelo mundo: “Assim que Temer assumiu como interino, houve uma política, com o ministro Alexandre de Moraes (Justiça), para restringir a entrada de sírios no país. Há uma clara diferença entre discurso e prática”.

Como dito no início deste texto, análises de discurso têm grandes limitações para se observar a conjuntura das relações internacionais, mas valem para a construção de cenários e prognósticos.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.