Marcação a mercado da renda fixa: mesmo título poderá ter preço diferente para investidores distintos; por quê?

Investidores qualificados – com mais de R$ 1 milhão em aplicações financeiras – poderão escolher se preferem migrar ou manter a marcação na curva

Mariana Segala

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Uma mudança regulatória envolvendo investimentos de renda fixa entrará em vigor na virada do ano. A partir do dia 2 de janeiro, os distribuidores – como bancos e corretoras – vão precisar “marcar a mercado” o valor de alguns títulos, como Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) e Imobiliário (CRIs), debêntures e títulos públicos adquiridos via tesouraria.

A marcação a mercado vai permitir que investidores pessoa física consigam acompanhar, dia a dia, quanto realmente valem os papéis que adquiriram. Isso porque esse processo nada mais é do que a atualização do valor dos títulos segundo os preços pelos quais estão sendo negociados no mercado.

Atualmente, a maior parte dos bancos e corretoras atualiza os preços dos investimentos de renda fixa com base na chamada “marcação na curva”. Um título marcado na curva tem seu valor atualizado todo dia pela mesma taxa contratada pelo investidor no momento em que fez o investimento.

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Ocorre que essa taxa muda todos os dias, de acordo com os negócios fechados entre quem tem o título para vender e quem está interessado em comprar. Com a marcação a mercado, a atualização do valor será realizada a partir da taxa que estiver sendo negociada para aquele investimento no dia.

A regra foi estabelecida pela Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) no início deste ano. Bancos e corretoras têm até o fim de 2022 para adaptar seus processos e informar os clientes a respeito da nova sistemática.

Mas há uma exceção, e ela pode acabar provocando uma situação inusitada: um mesmo título poderá ser registrado por um preço na carteira de um determinado investidor e por um preço diferente na carteira de outro.

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Isso pode acontecer porque os investidores qualificados – que contam com mais de R$ 1 milhão em aplicações financeiras – poderão escolher se preferem migrar para a marcação a mercado ou manter a marcação na curva. Se optarem pela marcação na curva, terão que formalizar esse pedido junto à corretora.

Já para os investidores de varejo, a mudança no tipo de marcação é obrigatória.

O efeito, no entanto, é “virtual”. Thiago Manso, responsável por vendas e negociações de renda fixa na XP, explica que, na prática, se decidir negociar seus papéis de renda fixa no mercado antes do vencimento, tanto o investidor qualificado quanto o de varejo precisarão vendê-los pelo mesmo valor, segundo os preços do dia.

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“A diferença é que o investidor de varejo, que terá os títulos marcados a mercado, provavelmente perceberá uma distância menor entre o valor dos seus papéis no extrato da corretora e o valor pelo qual conseguirá vendê-los no mercado”, diz. Afinal, os títulos já estarão refletindo as novas taxas de negociação diariamente.

Já um investidor qualificado que opte por manter a marcação na curva pode acabar se surpreendendo na hora da venda, seja com um valor maior ou menor do que seu extrato indicava.

Embora esteja gerando expectativa entre os investidores, Manso diz que a adoção da marcação a mercado não deve causar “um grande choque”. Isso porque outros papéis populares já têm seus preços atualizados dessa forma.

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É o caso, por exemplo, dos títulos públicos negociados no Tesouro Direto. Se você investe neles, é possível que em algum momento de 2022 tenha tomado um susto ao ver uma rentabilidade negativa registrada para os papéis. Títulos prefixados e atrelados à inflação costumam desvalorizar em períodos em que os juros estão em alta, como aconteceu ao longo desse ano.

Não significa que o investidor terá perdas: se mantiver os papéis na carteira até o vencimento, receberá a taxa acordada no momento em que o investimento foi feito. A chance de prejuízo existe quando há a intenção de venda antecipada.

“Os títulos do Tesouro Direto sempre foram marcados a mercado, assim como as ações e os investimentos dos fundos. Nossos clientes não compram apenas renda fixa privada, ele tem uma carteira heterogênea e experiência com esse processo”, afirma Manso.

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Fora isso, ele diz que corretoras como a XP já vinham disponibilizando a opção de acompanhar os títulos de crédito de acordo com a marcação a mercado desde 2019 – a diferença é que a partir de agora ela passa a ser obrigatória. “Há investidores interessados no trading, em comprar quando o título fica barato e vender quando ele valoriza. Para eles, a marcação a mercado já era importante”, explica.

Para Manso, adotar a marcação a mercado nos extratos dos investidores de varejo é sinônimo de maior transparência e proteção para o investidor – e um ganho para o segmento.

Confira abaixo uma lista de perguntas e respostas sobre a marcação a mercados dos investimentos de renda fixa:

1) O que exatamente vai acontecer com os investimentos de renda fixa a partir de janeiro de 2023?

Papéis como debêntures (incentivadas ou não), CRIs, CRAs e títulos públicos adquiridos via tesouraria (e não pelo Tesouro Direto) passarão a ser marcados a mercado por bancos e corretoras nas carteiras dos investidores pessoas físicas. Em outras palavras, os extratos de investimentos apresentarão os valores atualizados desses ativos, de acordo com os preços pelos quais estão sendo negociados no mercado.

Com esse processo, o investidor passará a entender melhor quanto vale hoje o título que ele comprou no passado, segundo Luciane Effting, vice-presidente do Fórum de Distribuição da Anbima. Para isso, os extratos de investimentos deverão conter a data da última atualização do preço de cada um dos ativos do investidor.

É importante lembrar que, embora os preços dos ativos passem a ser atualizados, se o investidor mantiver os papéis na carteira até o vencimento receberá como retorno a taxa de remuneração que foi contratada quando os adquiriu. A nova medida busca apenas oferecer uma possibilidade de acompanhar os preços e verificar se há uma possibilidade de ganho com a saída antecipada do papel.

2) Como isso funciona atualmente?

Atualmente, a maior parte dos bancos e corretoras atualiza os preços dos investimentos de renda fixa com base na chamada “marcação na curva”.

Lucas Queiroz, estrategista de renda fixa para pessoa física do Itaú BBA, esclarece que a diferença está na taxa utilizada no cálculo. Um título marcado na curva tem seu valor atualizado todo dia pela mesma taxa contratada pelo investidor no momento da aquisição do papel.

Se o investidor adquiriu um CRA que oferece retorno de 13% ao ano, por exemplo, todos os dias a corretora aplicará essa taxa sobre o valor investido para informar quanto o papel vale no momento. Esse tipo de marcação costuma fazer sentido para investidores que desejam resgatar o valor aplicado apenas no vencimento.

Agora, com a marcação a mercado, o movimento será diferente: a atualização do valor será realizada a partir da taxa que estiver sendo negociada no mercado para aquele investimento no dia. Essa taxa normalmente deve mudar todos os dias.

3) A marcação a mercado valerá também para papéis bancários, como os CDBs?

A mudança não engloba Certificados de Depósito Bancário (CDBs), Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs) e Imobiliário (LCIs), que seguirão com a marcação na curva que é feita hoje.

Segundo Luciane, da Anbima, a explicação está no fato de que esses títulos são emitidos por instituições financeiras que garantem a recompra dos papéis com base na marcação na curva.

Já no caso de CRIs, CRAs e debêntures, a empresa emissora não recompra o papel quando o investidor deseja. Ele precisa encontrar outro investidor disposto a pagar pelo papel no mercado secundário caso queira se desfazer dele.

4) Já existem investimentos de renda fixa marcados a mercado pelos bancos e corretoras atualmente?

Os títulos públicos adquiridos por meio do Tesouro Direto são marcados a mercado. Assim, quando o mercado precifica uma alta na curva de juros, por exemplo, a tendência é de que as taxas dos títulos públicos subam. Como consequência, o valor dos papéis recua.

O contrário também é verdadeiro: se as projeções para a Selic recuam, as taxas oferecidas nos títulos públicos caem – e os preços avançam.

Além dos títulos do Tesouro Direto, fundos que investem em ativos de crédito também marcam a mercado, nas suas carteiras, papéis como CRIs, CRAs e debêntures.

Para Myrian Lund, planejadora financeira CFP, a nova regra deve equalizar a compra de ativos individuais por meio das corretoras com as práticas já adotadas na indústria de fundos de renda fixa.

5) Para quais investidores a marcação a mercado será aplicada?

Segundo a nova regra da Anbima, investimentos feitos por pessoas físicas precisarão ser marcados unicamente a mercado, e não mais na curva.

Já os investidores qualificados – que contam com mais de R$ 1 milhão em aplicações financeiras – poderão escolher se preferem a marcação a mercado ou na curva. Se optarem pela marcação na curva, terão que formalizar esse pedido junto à corretora.

6) Como será realizado o cálculo do valor atualizado dos investimentos de renda fixa?

A maior parte das corretoras vai usar como referência os dados apurados pela Anbima. A entidade realiza uma coleta de preços todos os dias logo cedo, quando as instituições associadas enviam as cotações pelas quais os papéis estão sendo negociados no mercado, da mesma forma como acontece com os títulos públicos.

Depois de receber esses dados, a Anbima analisa os valores e verifica se há números muito discrepantes entre os diferentes bancos e corretoras. Em seguida, estabelece um preço de referência, disponibilizado no Anbima Data, um sistema que pode ser acessado por todos.

Segundo as corretoras, as taxas dos CRIs, CRAs e debêntures têm como base os dados publicados pela associação no dia útil anterior (D-1, no jargão financeiro).

7) O que a Anbima leva em conta na hora de estabelecer o valor dos papéis?

De acordo com Luciane, a associação analisa as mesmas informações que o mercado em geral. Ou seja, verifica se o papel possui liquidez e avalia os últimos preços de negociação para entender quanto os agentes financeiros estão dispostos a pagar pelo título. Também são verificadas as características do emissor, como o risco de crédito.

8) Com que frequência os títulos de renda fixa serão marcados a mercado pelos bancos e corretoras?

A norma da Anbima determina que as casas precisam marcar os papéis a mercado pelo menos uma vez por mês.

Segundo Luciane, a razão é que os investidores que compram papéis desse tipo não costumam negociá-los todos os dias. “O prazo de atualização, de 30 dias no máximo, é suficiente para o investidor ter uma noção de quanto ele está valendo”, explica. Porém, a maior parte das corretoras fará o cálculo dos preços diariamente.

9) Algumas corretoras já oferecem tanto a marcação a mercado quanto a marcação na curva para os investidores. O que muda nesse caso?

Queiroz, do Itaú BBA, destaca que a diferença a partir de janeiro de 2023 é que todos os distribuidores passarão a oferecer a marcação a mercado, o que deve incentivar os investidores a girar a carteira antes do vencimento dos investimentos de renda fixa – o que poderá ajudar o mercado a ter mais negociações e uma formação de preços mais precisa.

“Temos muitos títulos que já marcamos a mercado, mas como não há negociação no mercado secundário, não há novos preços para balizar. A taxa acaba ficando fixa”, afirma.

Mariana Segala

Editora-executiva do InfoMoney