Apple e Facebook: regras de privacidade abrem guerra declarada entre gigantes

Uma atualização no iOS, o sistema operacional do iPhone, promete ter impacto profundo na bilionária economia dos apps

Sérgio Teixeira Jr.

(Shutterstock)

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NOVA YORK – Uma atualização iminente no iOS, o sistema operacional do iPhone, promete ter impacto profundo na bilionária economia dos apps – e escancarar as diferenças que separam as gigantes da tecnologia no que diz respeito à privacidade.

Tradicionalmente, a Apple anuncia em meados do ano a nova versão do iOS, que chega aos consumidores no fim do ano junto com os novos modelos de iPhone. As mudanças incluem novas funcionalidades que se aproveitam do aumento de capacidade dos novos aparelhos e atualizações no visual do software.

Mas no iOS 14, apresentado ano passado, havia numa novidade de consequências muito mais importantes: o módulo App Tracking Transparency, ou “transparência no rastreamentos dos apps.”

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Esse módulo seria incluído na íntegra já na primeira versão do iOS 14, mas a pressão de produtores de apps e de gigantes como o Facebook levou a Apple a fazer um lançamento em fases.

Para entender o impacto potencial dessa mudança – importante a ponto de levar como Facebook e Twitter a se manifestarem oficialmente para seus acionistas – primeiro é preciso fazer uma breve explicação técnica.

As páginas que você visita na internet deixam arquivos (os chamados cookies) gravados no seu computador. Grosso modo, os aplicativos fazem o mesmo com o seu celular.

A imensa maioria dos usuários nem sequer sabe que está deixando um rastro online. Mas essa é a trilha que gigantes da internet, como Google e Facebook, seguem para saber o que você anda fazendo na rede e, assim, apresentar anúncios direcionados.

“Privacidade significa tranquilidade, significa segurança, significa estar no comando no que diz respeito aos seus dados”, disse Craig Federighi, principal executivo responsável pelo desenvolvimento de software da Apple, em um comunicado divulgado no final de janeiro. “Acreditamos que a privacidade é um direito humano fundamental”, afirmou.

Isso se traduz, segundo a visão da Apple, em mostrar quais informações são repassadas aos produtores dos apps e permitir que o usuário decida se quer entregá-las.

Uma primeira parte dessa nova política já foi implementada. Desde dezembro do ano passado, todo aplicativo tem de apresentar uma espécie de “tabela nutricional” de privacidade na sua página de download.

Como nos rótulos de alimentos industrializados, os apps têm de esclarecer que dados serão recolhidos. Tipicamente, eles envolvem seu nome, os seus contatos, sua localização e que tipo de aparelho você está usando.

Mas, além dessas informações básicas, os apps também incluem trackers, ou rastreadores: algumas linhas de código que os desenvolvedores incluem nos programas para acompanhar de forma mais detalhada o que você faz com o celular.

Considere um joguinho gratuito. Os desenvolvedores, especialmente os menores, se aproveitam de várias peças de Lego disponíveis de graça na internet. Elas permitem finalizar o software muito mais rapidamente – mas também incluem os tais rastreadores.

Além de não custar nada para o desenvolvedor, essas peças pré-fabricadas podem exibir anúncios – o jogo é gratuito para o usuário, lembre-se -, e uma porcentagem desse faturamento serve para remunerar o criador do app.

Esses rastreadores estão presentes na imensa maioria dos aplicativos, e é com base nos dados que eles recolhem que os anunciantes montam perfis de individualizados dos usuários, usados para decidir quais anúncios mostrar e quando.

De olho em você

Tudo isso acontece nos bastidores, sem o seu conhecimento – e às vezes sem o conhecimento dos próprios desenvolvedores. Muitas dessas peças disponíveis na internet não deixam claro quais dados estão colhendo dos usuários.

O objetivo da nova política de privacidade da Apple é trazer para a superfície essa indústria da coleta de dados. Inicialmente, isso se dá com os rótulos de privacidade.

A segunda fase, porém, é a que vem preocupando desde pequenos desenvolvedores a gigantes como Google e Facebook. A versão 14.5 do iOS (que deve ser liberada nas próximas semanas) vai obrigar os aplicativos a pedir permissão explícita do usuário antes de rastreá-los.

Segundo pesquisa da empresa Tap Research com 1.200 americanos, mais de 60% consideram improvável ou extremamente improvável que vão permitir o rastreamento por parte dos apps que usam regularmente.

Confronto de titãs

“Quando você ouve as pessoas dizendo que temos muitos dados, é porque centenas de milhões de negócios teriam de fazê-lo individualmente, e isso não era possível de uma maneira simples”, disse, no fim de janeiro, Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, na conferência de anúncio dos resultados trimestrais da empresa.

“Quando dizem que estamos conectando dados de várias fontes, é para ajudar pequenos negócios a se conectar com seus clientes de maneira mais eficiente”, afirmou Zuckerberg.

Em críticas direcionadas especificamente à Apple, o fundador do Facebook estava atacando a dificuldade de o WhatsApp engrenar nos Estados Unidos (o iMessage, da Apple, é a plataforma dominante no país). Zuckerberg afirmou que “cada vez mais vê a Apple como um de seus principais concorrentes”.

Mas o comentário também foi lido como uma reação à mudança iminente no iOS. Quase a totalidade dos US$ 86 bilhões de receita do Facebook vêm de publicidade.
E boa parte dessa publicidade depende do rastreamento dos usuários, não apenas nas propriedades do Facebook (como o Instagram), mas também em outros apps e páginas da internet.

Uma das maneiras de fazer isso é oferecendo um pedaço de código para os desenvolvedores incluírem a opção de login usando as credenciais do Facebook.

Sem isso, seria necessário começar do zero a programação de um sistema de cadastro e identificação dos usuários (o fato de todo mundo já ter uma senha do Facebook também ajuda, claro.)

Dan Levy, vice-presidente de anúncios e produtos para empresas do Facebook, afirma em um post de meados de dezembro que a iniciativa da Apple não diz respeito a privacidade, mas sim a “lucros”. Sem o rastreamento, os apps serão “forçados a cobrar assinaturas e outros tipos de pagamento” para sobreviver.

No começo da semana passada Jack Dorsey, CEO do Twitter, afirmou aos acionistas que espera um “impacto reduzido” com a atualização do iOS 14.

O Google, a outra grande empresa de mídia digital do mundo, continua em silêncio até aqui.

Nos últimos dias, usuários de iPhone que têm apps da empresa (como o superpopular Gmail) receberam avisos de que seus aplicativos estão desatualizados. Mas não há novas versões do app desde dezembro – quando entrou em vigor a regra do “rótulo nutricional”.

Uma reportagem da semana passada publicada pela Bloomberg indicou que o Google estaria considerando um sistema semelhante ao da Apple para o mundo Android.

Com um faturamento quase inteiramente dependente de publicidade, o Google terá de encontrar um equilíbrio delicado entre a proteção de privacidade e manutenção de seu modelo de negócios.

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Sérgio Teixeira Jr.

Jornalista colaborador do InfoMoney, radicado em Nova York