Por que o aborto se tornou tema crucial na corrida presidencial americana?

Na reta final, Kamala Harris faz do aborto um tópico central de sua campanha, forçando Donald Trump a se posicionar

Flavia Furlan

Manifestantes pelos direitos ao aborto se reúnem para uma manifestação em Columbus, Ohio 24/06/2022 (Foto: Megan Jelinger/Reuters)
Manifestantes pelos direitos ao aborto se reúnem para uma manifestação em Columbus, Ohio 24/06/2022 (Foto: Megan Jelinger/Reuters)

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Kara Ferreira, de 36 anos, é designer de websites e vive em Kent, Connecticut. Desde os 18 anos, ela já votou tanto em candidatos republicanos quanto democratas, identificando-se como centrista em questões sociais e liberal em política externa e econômica. 

No entanto, nas eleições de 5 de novembro, Kara apoiará Kamala Harris. Ela acredita que Donald Trump “sequestrou” o Partido Republicano, promovendo desinformação, especialmente sobre imigração — uma questão que lhe toca particularmente, pois é casada com um brasileiro. Além disso, Kara tem se preocupado cada vez mais com a postura da direita em relação a um tópico: o aborto. 

Kara diz que o “Partido Republicano tem deixado muito claro que parte de sua plataforma é desmantelar” os direitos reprodutivos. E, de acordo com ela, “Trump vai cantar em qualquer tom que eles impuseram em relação a essa questão.”

Nem as declarações recentes de Melania Trump mudaram a opinião de Kara. No início de outubro, a ex-primeira-dama lançou seu livro de memórias, no qual declara ser “imperativo garantir que as mulheres tenham autonomia na decisão da sua preferência de ter filhos, com base nas suas próprias convicções, livres de qualquer intervenção ou pressão do governo.”

Kara Ferreira, designer de websites em Kent, Connecticut (Foto: arquivo pessoal)

“Restringir o direito de uma mulher de escolher interromper uma gravidez indesejada é o mesmo que negar-lhe o controle sobre seu próprio corpo”, disse Melania. “Carreguei essa crença comigo durante toda a minha vida adulta.”

Melania aponta o que seriam, em sua opinião, motivos legítimos para o aborto, como risco de vida da mãe, estupro ou incesto, além de situações médicas graves. Ela também defende o direito ao aborto mais tarde na gestação, se necessário.

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A posição de Melania, porém, confronta o próprio partido de seu marido. Em 2022, no caso Dobbs v. Jackson, a Suprema Corte americana, com maioria indicada por Trump, revogou Roe v. Wade, removendo a proteção federal ao direito ao aborto. Desde então, os estados Republicanos têm implementado restrições rigorosas, como Alabama, Tennessee e Texas 

Em 2024, outros estados decidirão essa questão nas urnas. Dezenas de milhões de eleitores em Montana, Arizona, Missouri, Nebraska, Colorado, Florida, Maryland, Nevada, Nova York e Dakota do Sul votarão sobre o aborto. Na maioria dos casos, se as propostas forem aprovadas, esses estados permitirão o procedimento até cerca de 24 semanas ou depois, se houver risco à saúde da gestante.

“Não é comum o tema aborto ser o foco de tanta atenção em eleições”, disse Wendy Hansen, professora de ciências políticas da Universidade de New Mexico. “Isso aconteceu porque, antes da queda de Roe v. Wade, os estados não podiam fazer muitas coisas, apenas regulamentações incrementais; agora, foi dada carta branca para eles fazerem o que quiserem.” 

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Mas há outro fator em jogo: o fato de uma mulher jovem estar concorrendo à presidência. Segundo Hansen, “Joe Biden parecia incomodado em abordar o tema, em parte devido às suas crenças religiosas, mas também por ser um homem mais velho. Harris, no entanto, tem feito disso o ponto central na eleição, e Trump tem tido de responder à altura.” 

Wendy Hansen, professora de ciências políticas da Universidade de New Mexico (Foto: Divulgação/University of New Mexico)

O jogo de cada candidato 

Kamala tem defendido uma lei federal para garantir o direito ao aborto, enquanto alerta que Trump e o Partido Republicano poderiam buscar uma proibição nacional, uma estratégia angariar mais votos entre eleitores moderados e indecisos, segundo analistas políticos consultados pelo InfoMoney.

Na sexta-feira, ambos os candidatos rumaram ao Texas, um estado majoritariamente republicano, Trump para falar de imigração e Kamala, sobre aborto. Ela, que estava acompanhada de Beyoncé, disse que ali estava para mostrar o real dano que ocorre quando um estado impõe restrições, acrescentando que, “Infelizmente, os líderes eleitos do Texas fizeram do Texas o marco zero nesta luta fundamental pela liberdade das mulheres de tomar decisões sobre seus próprios corpos.”

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Já Trump tenta passar a mensagem de que a decisão sobre o aborto deve ser deixada para cada estado. Durante o debate entre vice-presidentes no início de outubro, ele chegou a postar numa rede social em letras garrafais que não apoia uma proibição federal ao aborto. “Os estados devem decidir baseados no desejo de seus eleitores”, ele escreveu.

Em apoio a essa posição, o partido Republicano removeu de sua plataforma para 2024 a menção a uma proibição nacional, uma diretriz existente há quatro décadas. Nesse contexto, o posicionamento de Melania foi percebido como estratégico. 

“Essa nova reviravolta de Melania Trump mais ajuda Donald Trump do que atrapalha, já que ressalta a posição de que ele não é a favor de uma proibição nacional do aborto,” disse Grant Reeher, professor de ciências políticas na Universidade Syracuse, em Nova York 

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Reeher completa: “Ter a sua esposa apoiando o aborto com tanta ousadia provavelmente irá ajudá-lo a persuadir os que duvidam de que ele deixará o assunto para os estados, onde está atualmente. Esta questão tem ajudado os democratas desde a decisão da Suprema Corte que anulou Roe v. Wade.” 

De fato, uma pesquisa do Pew Research Center indica que metade ou mais dos eleitores confia em Trump para lidar com temas como economia, imigração e política externa, comparado com 45% que dizem o mesmo sobre Kamala. No entanto, 55% dos eleitores mostraram confiar em Harris para tomar boas decisões sobre aborto, enquanto apenas 44% afirmam o mesmo de Trump.

Richard Himelfarb, professor de ciência política da Universidade Hofstra, em Nova York, disse que Trump parece ter notado estar do lado menos popular de uma questão polarizadora. “Ele tem passado a mensagem de que não é contra aborto; ele apenas quer que os estados decidam sobre o tema. Ele está tentando moderar a sua posição.” 

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Essa abordagem, porém, não é isenta de riscos. Segundo analistas, Trump pode afastar sua base religiosa conservadora que se opõe ao aborto. Mas há uma ressalva: “Essas pessoas estão desapontadas com Trump, mas estão presas a ele. Elas não têm para onde correr, então acabarão por apoiá-lo.” 

Kamala tenta explorar essa vulnerabilidade de Trump com relação ao tema, convocando eleitores às urnas. Em agosto de 2020, 40% dos eleitores americanos consideravam o aborto uma questão muito importante – 46% entre os eleitores de Trump e 35% entre os de Biden. Hoje, essa importância aumentou entre os eleitores de Harris, com 67% considerando o tema essencial, contra 35% dos apoiadores de Trump.

Em Connecticut, Kara traduz um pouco esse sentimento: “Uma das maiores vergonhas dos nossos tempos é de que a minha filha tem menos direitos do que eu tive quando mais jovem – digo, menos autonomia em relação ao seu corpo”, ela disse. 

Em sua opinião, “Os governos podem até barrar abortos. Mulheres vão continuar a fazê-los, mas infelizmente de uma maneira menos segura.”