Nossa moeda, problema de vocês: até onde EUA e China podem ir na briga pelo yuan

Troca de farpas pode culminar em medidas protecionistas, mas avaliação é de que retaliações não são caminho mais provável

Julia Ramos M. Leite

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SÃO PAULO – Em 1971, o então secretário do Tesouro norte-americano, John Connally, discutia a taxa cambial com autoridades europeias, preocupadas com as recentes movimentações do dólar, quando afirmou: “o dólar é nossa moeda, mas problema de vocês”.

Agora, 40 anos depois, parece que a história volta para assombrar os Estados Unidos – mas hoje, quem diz “problema de vocês” não são mais os norte-americanos, e sim os chineses, que ignoram as pressões dos EUA por uma valorização mais rápida do yuan.

Mas por que a China segue tão resistente em deixar sua moeda se valorizar? Segundo Carlos Nunes, estrategista do HSBC, a nova abertura da economia na China tem atraído capital de alta qualidade, o que, somado a uma reserva quase ilimitada de mão-de-obra barata, torna-a um país extremamente competitivo. “Se o yuan se valorizasse, provocaria uma perda temporária de competitividade nas exportações chinesas. Os líderes da China, portanto, têm razão em argumentar que um aumento na taxa de câmbio traria poucos benefícios no curto prazo e seria altamente prejudicial para os trabalhadores da China no longo prazo”, explica.

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Em relatório do Banco Cruzeiro do Sul, o antigo diretor do Banco Central, Alberto Furuguem, também falou sobre o assunto, avaliando que a entrada da China em um sistema de câmbio flutuante deve demorar ainda alguns anos. “A cada reunião do G-20, a China promete valorizar o yuan, ou até faz alguma pequena valorização prévia, para não ficar muito desconfortável diante da pressão internacional”. Ele explica, contudo, que essas valorizações têm sido “milimétricas” diante do que seria necessário.

Briga de gigantes
Apesar do envolvimento de outros países nos dois lados da discussão, a briga central é entre Estados Unidos e China – respectivamente a primeira e segunda economia do mundo. O secretário do Tesouro norte-americano, Timothy Geithner, tem sido um dos principais porta-vozes da questão, pedindo sucessivamente por uma valorização mais forte do yuan – que, em sua visão, não tem sido rápida o suficiente desde o anúncio de flexibilização da moeda em junho.

“Acreditamos que é muito importante que as grandes economias emergentes sejam mais flexíveis e voltadas ao mercado em termos de câmbio, o que é particularmente importante para os países cujas moedas estão significativamente desvalorizadas”, afirmou Geithner na última semana.

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Em uma entrevista à Bloomberg, ele culpou o país asiático inclusive pelos problemas cambiais enfrentados recentemente pelos emergentes. “O que acontece é que, com a China mantendo sua moeda desvalorizada, as outras divisas (dos emergentes) estão subindo e eles estão tendo que se esforçar para garantir que não estejam em desvantagem em relação à China”, afirmou o secretário.

Ademais, no final de setembro, a Câmara norte-americana aprovou um projeto de lei – que ainda deve ser aprovado pelo Senado, o que só deve acontecer em novembro – que permite que os EUA imponham impostos sobre os produtos importados chineses.

A posição da China, por sua vez, não é menos dura. “Rejeitamos firmemente a politização dos assuntos econômicos”, declarou a porta-voz do Ministério de Assuntos Exteriores da China, Jiang Yu. “Nosso mecanismo de câmbio não aceitará pressões externas”.

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Outras autoridades do país também se manifestaram sobre o assunto.“A China deixará que sua moeda se valorize baseada no nível de desenvolvimento e na situação econômica global, e decidirá independentemente e de maneira autônoma sobre a sua taxa cambial”, afirmou recentemente um porta-voz do Ministério do Comércio, Chen Jian. “A taxa cambial é uma questão soberana, e é desnecessário que a Câmara dos EUA intervenha no assunto”.

Além disso, na última semana, o premiê chinês, Wen Jiabao, alertou aos países europeus que não se envolvam na questão. “Se o yuan não estiver estável, isso trará um desastre para a China e para o mundo”, disse. O governo chinês também se mostrou bastante descontente com a medida aprovada pela Câmara dos EUA, afirmando que ela pode abalar as “importantes relações entre Estados Unidos e China”.

“Discussão ridícula”
“Essa discussão comercial é ridícula”, dispara o banco francês Natixis sobre o assunto. Para o analista Patrick Artus, o yuan não está tão desvalorizado quanto os EUA afirmam – já que a taxa cambial deve levar em conta também o nível de desenvolvimento do país, medido por PIB (Produto Interno Bruto) per capita em poder de paridade de compra. Com isso, o Natixis conclui que o yuan está desvalorizado em cerca de 10% frente ao dólar – nada anormal, e não muito diferente do que já foi visto com as moedas sul-coreana e japonesa no passado recente.

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Também sobre o assunto, Nunes afirma que a equipe do HSBC não acredita que os EUA irão levar adiante a extensão dos cortes de impostos. “Na verdade, é bem provável que esta medida se trate de um ruído antes das eleições de meio de mandato do Congresso norte-americano, marcadas para 2 de novembro”, explica. “Os norte-americanos não podem esquecer que o seu próprio estímulo fiscal tem sido possível graças aos fundos dos países credores, com destaque para a China”.

Possíveis retaliações
“Não descartamos a possibilidade de que tais medidas de retaliação possam ocorrer tanto pela China como pelos EUA”, diz Nunes. Entretanto, o estrategista não vê esse como o caminho mais provável. “Como os chineses têm se mostrado flexíveis para debater o assunto, não acreditamos que os norte-americanos devam reagir no curto prazo”, explica. Da mesma forma, Nunes não espera grandes retaliações chinesas. 

Ainda assim, o estrategista do HSBC se propõe a avaliar quais seriam as formas de reação da potência asiática. “Em última instância, o país poderia impor retaliações e limitar compras de produtos americanos”.

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O Natixis também especula que a implementação de impostos sobre os importados chineses nos EUA poderia gerar uma contra-medida do país asiático de sobretaxar os importados norte-americanos. O banco francês, contudo, lembra que os produtos importados – tanto os chineses pelos EUA quanto o contrário – não podem ser substituídos por produtos domésticos. “Nesse caso, veremos uma alta dos preços e uma desaceleração do crescimento, em especial nos EUA”, explica o banco.

Nunes também aponta outro caminho possível: “a China pode deixar de comprar títulos públicos norte-americanos como forma de retaliação – afinal, a China hoje é individualmente o maior credor externo da dívida soberana norte-americana”.

O que esperar
Mas então, o que esperar dessa discussão no curto prazo? Depois de a reunião entre FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e autoridades financeiras em Washington no último final de semana terminar sem uma resolução sobre o assunto, a tendência é que a China siga mantendo sua moeda no patamar que deseja. O Goldman Sachs, por exemplo, espera que nos próximos três a seis meses, o ritmo da apreciação do yuan volte a se desacelerar, com as pressões políticas diminuindo.

“Realisticamente, tudo indica que somente vamos ter um ajuste estrutural na política cambial chinesa quando aquele país estiver em estágio bem mais avançado de desenvolvimento. Enquanto isso não acontecer, países que se sintam prejudicados pela concorrência dos produtos chineses, nos mercados interno e externo, tendem a buscar suas próprias soluções”, explica Furuguem. Para ele, o resultado dessas medidas poderá não ser “dos mais brilhantes”, na medida em que resulte em disseminação de medidas protecionistas e mesmo algum tipo de guerra cambial.

“Uma atitude mais produtiva seria os EUA reconhecerem que existe uma dependência mútua entre as duas superpotências e trabalharem junto com Pequim para acelerar reformas na economia doméstica da China”, completa Nunes. Nesse sentido, uma indicação de que a briga pode acabar se dissipando ao invés de culminar em uma guerra cambial é que nesta sexta-feira (15) Geithner já amenizou o tom das acusações, reconhecendo as atitudes da China desde o início de setembro para acelerar o ritmo de alta do yuan. O secretário, contudo, voltou a bater na tecla de que é necessário que a moeda siga nesse caminho.

“Desde 19 de junho, quando a China anunciou que renovaria a reforma de sua taxa cambial e que permitiria que o yuan se valorizasse em resposta às forças do mercado, a divisa chinesa avançou cerca de 3% frente ao dólar. Desde 2 de setembro, o ritmo se acelerou para mais de 1% ao mês. Se isso se mantiver, pode ajudar a corrigir o que o FMI classificou como uma moeda significativamente desvalorizada”, afirmou Geithner.

Nesta sexta-feira, o Tesouro dos EUA anunciou que adiará a publicação de seu relatório sobre economia internacional e políticas cambiais para se aproveitar das discussões das próximas semanas entre autoridades fiscais e monetárias, incluindo-se o encontro do G-20, que acontece entre 21 e 23 de outubro. As expectativas eram que o relatório colocasse a China como “manipuladora cambial”.

E o Brasil?
Apesar de uma posição mais periférica na discussão, o Brasil não fica de fora da questão cambial. Depois de o ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmar que o mundo vive uma guerra cambial, o ministro das Finanças da Rússia, Dmitry Pankin, disse que os BRICs, conjunto de países emergentes composto por Brasil, Rússia, Índia e China, estão unidos contra a tentativa dos EUA de enfraquecer os mecanismos de controle do câmbio.

Nunes explica que o excesso de dólares no mundo, resultado das políticas de flexibilização da oferta monetária nos EUA, tem favorecido o ingresso de capitais para países emergentes, sobretudo aqueles com sólidos fundamentos macroeconômicos e bom potencial de crescimento – caso do Brasil.

“Investimentos estrangeiros no país são positivos até certo ponto, afinal quando tais investimentos ocorrem de forma exagerada trazem implicações no curto prazo, como a valorização excessiva do câmbio e a consequente queda da competitividade da indústria local”, completa o estrategista.