Não virá paz do STF

O exame do caso de Lula tornou dualista a discussão sobre a sua prisão

Francisco Petros

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Nessa quarta-feira (04.04.2018) estaremos diante da decisão do STF sobre a prisão (ou não) do ex-presidente Lula. O caso concreto está a suscitar múltiplas interpretações, sofisticada hermenêutica e acende debate social e político, decisivo no curto prazo para as eleições desse ano, duvidoso no médio prazo para o Judiciário do Brasil. Tempos incertos e obscuros.

O interessante de observar na decisão suprema da Corte é que confluem dois temas sobre a punibilidade penal, cuja análise de cada um deles leva a conclusões relativamente pacificadas na teoria do direito nativo ou internacional, mas que em seu conjunto causam confusão hermenêutica de sobra, muito embora não devesse chegar a tanto. Os temas são: a interpretação do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal e a prisão de condenados por crime em segundo grau.

Em relação ao primeiro ponto controverso, parece-me muito difícil interpretar diversamente o referido artigo constitucional daquilo que ele próprio enuncia no inciso LVII do artigo 5º da Constituição: “LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ora, se alguém não é “culpado” até o trânsito em julgado, como poderia ser preso? Com o devido respeito aqueles que desejam interpretar (extensivamente) o referido comando constitucional, parece-me tarefa hercúlea, senão descabida. Historicamente, também é claro que o constituinte de 1988 estava com os dois olhos na possibilidade de arbitrariedades judiciais e olvidou, ao menos de forma mais consequente, dos aspectos criminológicos da penalização: não se esperava que o “trânsito em julgado” se tornasse empecilho material para a punição daqueles que cometem crimes.

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Ademais, sendo o artigo 5º “cláusula pétrea”, não se pode alterá-lo, mas também não se pode esculpi-lo com interpretações muito além daquilo que reza. É caso bastante diverso de comandos como o da expressão intelectual e artística. Aqui cabe dizer que as “cláusulas pétreas” da Constituição Brasileira tornaram “naturais” – para usar uma expressão tipicamente kantiana – direitos que não deveriam ser concedidos de uma vez por todas. Não poderia o constituinte fixar o sentido do direito à liberdade em outro conceito (“trânsito em julgado”) que tem expressão processualmente determinada, cuja variação interpretativa pode ser elástica ao longo da história, muito embora saibamos exatamente o seu sentido atual: é quando o processo se encerra definitivamente. Cláusulas pétreas são garantias principiológicas, mas temos de reconhecer que contém riscos políticos e sociais e esses não são pequeninos como os constitucionalistas costumam pregar.

O segundo tema controverso é sobre a razoabilidade da prisão por crimes cometidos após o julgamento em segundo grau. Não precisa ser doutor em direito comparado para que se possa reconhecer que é muito razoável a prisão após o julgamento em segunda instância. Isso como regra. Como exceção normativa, cabe a prisão a qualquer tempo, desde que devida e restritivamente a prisão esteja enquadrada no que reza a norma aplicável. Aqui o conflito está na órbita daquilo que Norberto Bobbio salienta como sendo a necessidade de proteção do homem em relação ao Poder. O aumento ou redução da proteção ao Poder Estatal implica em efeitos proporcionais à liberdade. No Brasil de hoje o que se percebe é que no campo das denominadas liberdades individuais e políticas estamos em época de redução de direitos e não expansão destes. Infelizmente, a prisão em segundo grau não é vista como “natural” dentro do processo penal, como no caso de larga maioria dos países democráticos. Foi convertida em espécie de vingança do Estado contra o indivíduo, concretamente Lula e outros tantos que tem frequentado as cortes penais.

O que escrevo acima não pretende, é claro, esgotar interpretações e visões sobre o tema da penalização no grau de jurisdição. O que se pretende demonstrar é que o exame do caso de Lula tornou dualista a discussão: do ponto de vista formal vê-se impossível a prisão por força de cláusula pétrea, cuja interpretação não pode sugerir o que não está escrito, não por força tão somente de interpretação gramatical, mas inclusive do ponto de vista da avaliação do sistema normativo em seu conjunto; do ponto de vista material, a mudança ou supressão do conceito de “trânsito em julgado” como critério da presunção de inocência (ou culpabilidade) permitiria que o Brasil se juntasse ao conjunto de países que consideram o segundo grau como limite máximo para o início da execução da pena.

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O papel de pacificador social do Judiciário, contudo, sairá visivelmente chamuscado desse episódio. Isso ocorre como decorrência da dissonância urdida nas cortes superiores de forma casuísta. A fila de réus da elite política e econômica engendrou os tribunais em estranha “vontade especial” em relação ao cumprimento de sentença. Como se vê pela resumida argumentação acima, não há tanto a ser examinado do ponto de vista da matéria. Todavia, parte das cortes querem ultrapassar os limites constitucionais sem que se percorra sequer a via legislativa, embora reste o quesito da cláusula pétrea sobre a mesa. Se não ultrapassada a Constituição pelo STF, restará o sentimento popular de que não há justiça para o ex-primeiro-mandatário do país porquanto o ex-operário seja parte da denominada elite.

A decisão sobre a prisão (ou não) de Lula da Silva se insere dentro da crônica crise institucional do país. O Brasil, que deixou de ser país do futuro para viver o passado, está cada vez mais tomado pela ausência de funcionalidade dos poderes e isso avança de forma torrencial sobre os cidadãos. Não virá pacificação do STF a partir dessa decisão em função da ambição das cortes em cuidar de mudar a norma, por meio de duvidosa interpretação para adaptá-la ao caso concreto.