Temos que esquecer por enquanto as reformas e focarmos em salvar vidas, diz Raul Velloso

Ex-secretário do Ministério do Planejamento e economista formado por Yale explica suas visões para a economia e diz que estamos em guerra com a pandemia

Ricardo Bomfim

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SÃO PAULO – O Orçamento público excessivamente engessado por gastos obrigatórios e o tamanho de contas como a da Previdência sempre foram preocupações centrais de Raul Velloso, economista Ph.D em economia pela Universidade de Yale e ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento no governo Sarney.

No entanto, o economista tem defendido cada vez mais propostas que têm bem menos consenso entre seus pares como o fim do teto de gastos e o aumento dos investimentos em programas sociais.

A explicação para isso tem nome: Covid-19. Para Velloso, o momento agora é de salvar vidas e focar nos programas de vacinação. O ajuste fiscal fica para depois, quando a saúde deixar de tomar todo o tempo dos gestores de políticas públicas.

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“Temos que esquecer a PEC Emergencial e a Administrativa hoje. Se as pessoas estão morrendo de uma doença nova e extremamente perigosa vamos demitir funcionários públicos agora?”, questiona o economista.

Para Velloso, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, e toda a sua equipe precisam parar de rejeitar a realidade de que o Brasil vive uma emergência sanitária e permitir que a população possa subsistir em tempos de isolamento social via programas como o Auxílio Emergencial. Na visão do economista, isso é mais importante do que cuidar da trajetória de longo prazo da dívida pública.

“O que mais me incomoda é essa frieza do governo em dizer que não vai ter mais ter Auxílio Emergencial. Dizer isso é como afirmar que em uma guerra os países devem priorizar o controle da emissão monetária ou de dívida”, critica.

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Em uma situação extraordinária como a atual, o economista entende que o principal é manter os níveis de emprego e renda, e não acredita que será boa notícia se o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro crescer 3,5% em 2021 como a maioria dos economistas espera hoje.

Leia também: “O Brasil tem dois problemas neste momento, o pandêmico e o endêmico”, diz Alberto Ramos, do Goldman Sachs

Na opinião dele, esse número quase não passa do carrego estatístico da recessão de 2020, e será preciso de muito mais que isso para que o Brasil possa se considerar novamente nos trilhos de um avanço econômico que gere prosperidade e reduza a pobreza das pessoas.

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Raul Velloso falou com o InfoMoney na entrevista que você lê abaixo.

InfoMoney: Após a forte crise do ano passado, como o senhor enxerga a trajetória da economia brasileira daqui para frente? Este ano devemos crescer mais de 3% impulsionados pelas commodities?

Raul Velloso: Os economistas do mercado financeiro, em suas projeções recentes, chegaram a esse número colocando como base o nível de atividade do fim do ano passado, mantendo constante até o fim de 2021 e calcularam quanto isso implica de crescimento.

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Tem um buraco na evolução do PIB do ano passado que, na comparação com 2021, vai resultar naquele crescimento de 3,5% que os economistas projetam e que é mero efeito estatístico.

Isso significa que mesmo aqueles que têm por dever de ofício trabalhar com projeção de PIB estão perdidos. Essa projeção que está no [Relatório] Focus [do Banco Central] serve mais de ponto de partida para raciocinar sobre o quanto a economia vai se movimentar para cima ou para baixo. Se crescermos 5,5%, por exemplo, serão 3,5% do efeito estatístico e apenas 2% de crescimento de fato.

Quando olhamos para o ano que se inicia, o principal é saber que há pessoas que vão conseguir ser vacinadas e se, a partir disso vão se livrar da dificuldade de locomoção que existe hoje.

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É isso que vai ditar o ritmo da recuperação econômica no ano. Quanto mais demorarmos para vacinar as pessoas mais tarde será a recuperação econômica.

O problema é que a vacinação hoje está muito parada no Brasil. O programa de imunização vai servir muito mais como instrumento de disputa política do que como medida sanitária. Já há uma maior disseminação do vírus por conta das novas cepas descobertas no Reino Unido e não há nem sinal de vacina aqui no Brasil.

Além disso, a nova variante do coronavírus traz um ruído para o isolamento social dos que não estão se vacinando. Vale lembrar que os mais jovens só devem se vacinar para o final do ano, porque primeiro serão imunizados os profissionais da saúde, que estão mais expostos, e depois os idosos, que correm mais risco. Só depois haverá vacinação geral.

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Por isso, acredito que não são boas as perspectivas para o nosso crescimento além do mero efeito estatístico. O governo não está empenhado no processo [de vacinação] e mesmo que estivesse teria um desafio enorme pela frente por conta dessa nova cepa do vírus. Vamos ter um ano ainda bastante cheio de ruídos independentemente da política econômica.

IM: Mas uma boa notícia para o crescimento não seria esse novo boom das commodities? É possível que o setor externo sirva como motor da economia em um momento no qual o cenário doméstico ainda se encontra tão cheio de incertezas?

RV: De qualquer forma o comércio exterior deve ser o mais importante, não somos nós que iremos definir isso, é um fator exógeno. O nosso setor exportador sempre aproveitou momentos de pujança e pode trilhar caminhos que independem da política doméstica. Isso pode sim ser um efeito amortecedor de desacelerações.

O problema é que, nesta seara, o governo tem mais a atrapalhar do que ajudar. Não é hora de comprar briga com a China por conta do leilão do 5G, por exemplo. Um problema central da realidade que enfrentamos é que o governo nunca aceitou que entramos em uma situação emergencial.

Desde 2020 o Planalto resiste à realidade da pandemia. Do Ministério da Economia ao presidente há uma dificuldade séria em aceitar que isso é uma guerra. Se não aceitarmos uma realidade tão desafiadora como a atual deixaremos de reagir de maneira correta.

Em março do ano passado, o [ministro da Economia] Paulo Guedes falou no Congresso que com R$ 3 bilhões a R$ 5 bilhões ele aniquilaria a pandemia. Já se gastou desde então algo próximo a R$ 500 bilhões e teremos uma queda do PIB da ordem de 4,5% em 2020 e mais de 100 mil mortos.

Várias vezes o governo quis tocar uma agenda da qual ninguém queria saber porque havia uma agenda emergencial. Isso gera um descompasso entre o diagnóstico do problema e as soluções.

Hoje, as questões políticas mais importantes são que não se conseguiu negociar a mudança da presidência de Câmara e Senado, não se pôde aprovar o Orçamento da União e não se sabe se o Auxílio Emergencial vai ser prorrogado.

IM: O senhor acha que o Auxílio Emergencial deveria ser prorrogado em 2021?

RV: O Auxílio Emergencial é importante para manter as pessoas vivas e inseridas na economia. Os informais que nos cercam tiveram que ser confinados e não têm opção alguma para ganhar dinheiro. Se eles não trabalharem para poderem ficar em casa vão morrer de fome. Mais do que um instrumento para manter a economia funcionando, o auxílio é um mecanismo para salvar vidas.

O que mais me incomoda é essa frieza do governo em dizer que não vai ter mais ter Auxílio Emergencial. Dizer isso é como afirmar que em uma guerra os países devem priorizar o controle da emissão monetária ou de dívida.

Essas pessoas que dizem não haver dinheiro e que temem a volta da inflação parecem não se lembrar de que na crise de 2008 as autoridades monetárias multiplicaram por dez a quantidade de moeda disponível na economia e socorreram o sistema financeiro e as pessoas que estavam afundadas em dívidas imobiliárias.

Aquilo deveria causar um absurdo inflacionário, mas a inflação caiu. Ou seja, se emitirmos moeda e prorrogarmos o auxílio emergencial enquanto estivermos em uma crise como a atual não teremos esse tipo de efeito. O impacto inflacionário só virá na fase 2, quando não tiver mais pandemia e os postulados da economia voltarem a serem os de um mundo normal.

IM: O senhor tem criticado em seus artigos o teto de gastos, afirmando que ele foi uma boa ideia, mas que se tornou inviável neste contexto de pós-pandemia e com o engessamento do gasto público. Qual seria a solução para não se perder o controle das contas públicas?

RV: O teto de gastos parte de uma percepção ingênua. O Orçamento tem tal rigidez que é o sonho de uma noite de verão dos economistas e burocratas que criaram o teto que, uma vez ali, essa regra mobilizaria as forças políticas a mudar a Constituição e tornar o Orçamento flexível. Quatro anos depois nada mudou na rigidez do Orçamento.

As despesas vão continuar não sendo cortadas e o único item flexível, que é o investimento, vai sendo reduzido. Isso vai se somar ao agravamento do problema previdenciário dos estados. O déficit da Previdência do regime especial do setor público vai crescer e, se somarmos isso com o teto, em breve teremos a zeragem de todo o investimento público.

Chega uma hora que não vai ter investimento nenhum. Se os investimentos públicos caem há tanto tempo e são uma parcela ínfima do que eram nos anos 40, com investimento zero, isso vai implicar em uma perda da capacidade de crescimento do País, a menos que acreditemos que o investimento do governo não serve para nada.

Só que a economia vai precisar crescer principalmente no fim do ano quando as pessoas estiverem vacinadas. O investimento público deve ser complementar ao privado, ainda mais em um momento no qual a iniciativa privada tem maior dificuldade de despender os vultosos recursos necessários em áreas como infraestrutura. Se o governo não puder emitir dinheiro nem dívida, o País está condenado a ter uma crise depois da pandemia.

IM: O senhor se refere ao investimento público para sanar os gargalos da economia como infraestrutura logística e capacidade do setor elétrico?

RV: Sim, são os segmentos em que os gastos para expansão em relação aos ganhos pelo maior nível de produtividade estão muito acima do que pode arcar o setor privado. Teriam que entrar na conta pública.

Como já falamos aqui, vivemos um choque favorável do setor externo. Se conseguíssemos investir em ferrovias e rodovias para escoar a produção agrícola e mineral para os portos, imagina o quanto poderíamos ganhar a mais em um momento como este de valorização das commodities.

IM: O senhor está falando em aumentar gastos para salvar a população da pandemia e estimular o crescimento econômico, mas em algum momento teremos que conter essa evolução da trajetória da dívida pública em relação ao PIB, que já chega a quase 100%. Como o senhor acredita que, no longo prazo, esse problema poderia ser solucionado?

RV: Para conter o endividamento público no longo prazo precisamos garantir que o numerador da relação dívida líquida dividida pelo PIB cresça menos que o denominador. Ou seja, a taxa de juros deve crescer menos que o avanço da economia. Assim, a razão vai ser reduzida e vamos voltar a entrar em uma situação satisfatória.

A meu ver, a vacinação é o mais importante para voltarmos a crescer e sair dessa trajetória de crescimento da dívida sobre o PIB. Se vacinarmos, por exemplo, 70% da população e a economia voltar a funcionar normalmente, aí sim poderemos voltar a querer resolver problemas de déficit público que seriam prementes em uma situação normal.

IM: A equipe econômica do governo segue empenhada na aprovação de reformas como a PEC Emergencial e a Administrativa. O senhor acredita que elas são as pautas econômicas mais urgentes hoje?

RV: Temos que esquecer a PEC Emergencial e a Administrativa hoje. Se as pessoas estão morrendo de uma doença nova e extremamente perigosa vamos demitir funcionários públicos agora? Não tem como se defender de morte e diminuir a renda das famílias ao mesmo tempo. Isso só funciona na cabeça de quem nunca teve que socorrer a própria família. Essas reformas têm que ser postergadas.

Sem uma crise da dimensão da atual eu já vivi situações dentro do governo em que tive de resolver questões que, se não fossem solucionadas, não permitiriam o andamento de reformas de longo prazo.

Fora isso, o Congresso não vai deixar passar nada difícil se não estiver relacionado com a emergência que é a pandemia. Quando o coronavírus acabar aí sim vamos tratar da economia de paz.

Estou curioso para ver como caminhará isso até o dia 1º de fevereiro. Se vencer [nas eleições para presidente da Câmara] o candidato do [atual presidente da Câmara, Rodrigo] Maia (DEM-RJ) não sei o que vai andar no Congresso.

Tudo isso ocorre em um momento no qual as pessoas estão sofrendo com a falta da vacina, que pode não sair tão cedo, e sem auxílio emergencial, o que força as pessoas mais pobres a saírem para trabalhar.

Como resposta, os governadores prendem as pessoas em lockdown e a disputa política com o governo se acirra, alimentando uma bola de neve perniciosa. E se liberar tudo, a velocidade de contaminação vai disparar e muita gente vai morrer.

IM: O senhor tem defendido muito uma reforma na Previdência dos estados, que considera a questão fiscal de maior importância hoje. Como ela seria feita?

RV: Há muitos casos, como as prefeituras de São Paulo e do Rio de Janeiro, em que precisamos calcular em quantos anos o investimento vai zerar porque o déficit previdenciário vai engolir os outros gastos.

Na cidade do Rio de Janeiro, como pude verificar, o investimento já zerou no ano passado. A partir de 2021 todo o Orçamento será usado para gasto obrigatório. E não é um caso isolado. Todos os exemplos de grandes municípios que eu analisei zeram os seus investimentos em, no máximo, dez anos. Ou seja, estamos à beira de um precipício neste assunto.

O que tem de ser feito é a reforma de regras, aumento da contribuição dos servidores e criação de novos fundos previdenciários para colocar quem entrou no sistema a partir de uma certa data.

Precisa transferir as pessoas que não estão perto de se aposentar da parte quebrada para a que não está quebrada e colocar ativos na parte nova para capitalizar a Previdência.

A Reforma da Previdência foi aprovada para o âmbito federal, mas não vai valer nos demais entes federativos a menos que estados e municípios aprovem em seus legislativos estaduais e municipais suas próprias regras.

Já temos bons exemplos de municípios que fizeram o que eu proponho e levantaram R$ 170 bilhões em ativos que estavam mal gerenciados no setor público e agora estão em aplicações financeiras para no futuro comporem a Previdência das pessoas que estão começando a trabalhar agora.

IM: O Brasil teve uma trajetória de crescimento robusta do início do século até meados dos anos 2010, quando uma série de crises, políticas econômicas malsucedidas e choques externos nos colocaram em uma espiral recessiva. Quanto tempo vai demorar e o que o Brasil precisa fazer para voltar a ser aquele País da capa da revista The Economist em que o mundo se espelhava?

RV: O que temos que fazer é entender que o mundo mudou em relação a políticas econômicas básicas. Como já disse antes, a crise de 2008 mostrou que a inflação é um processo muito mais complexo do que uma reação automática à emissão de moeda.

Precisamos conseguir dominar essas ideias erradas e ultrapassadas para direcionarmos melhor as soluções para a economia. O investimento deve ser público e privado.

O investimento externo que esse governo tanto busca, por mais importante que seja, tem muito mais dificuldade de enxergar alguma coisa de bom aqui dentro.

IM: É interessante ouvir o senhor falar no aumento de gastos públicos como solução porque foi um forte crítico dos gastos e intervenções estatais realizados no governo Dilma. O que mudou?

RV: O investimento público daquela época era mal feito e mal direcionado. Quando bem feito, o gasto pode ajudar no nosso problema de crescimento.

Um investimento em estrada que vai de nada a lugar nenhum não adianta, mas precisamos voltar atrás e recuperar experiências passadas de como investir melhor.

No governo Dilma o [ex-ministro da Fazenda], Joaquim Levy, criou um mecanismo de seleção de projetos chamado Projeto Prioritário de Investimento, ou PPI, que tinha um sistema de avaliação baseado em diretrizes do [Fundo Monetário Internacional] FMI.

A Dilma logo rejeitou o PPI em detrimento do [Programa de Aceleração ao Crescimento] PAC. Temos que ter algo análogo ao que o Joaquim fez com uma estrutura positiva para avaliar o investimento público. Precisa ter um ente específico destinado a analisar o custo-benefício de toda obra. Não é só porque eu posso gastar dinheiro com algo que eu devo fazê-lo.

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Ricardo Bomfim

Repórter do InfoMoney, faz a cobertura do mercado de ações nacional e internacional, economia e investimentos.