“Surpresas” positivas do PIB já podem ser sinais de efeitos cumulativos das reformas, diz Zeina Latif

Economista diz ver indícios de que potencial da economia brasileira avançou após "arrumação" da macroeconomia

Roberto de Lira

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O Brasil pode estar atravessando um momento no qual já é possível encontrar sinais que as reformas estruturais dos últimos anos, em especial as que aconteceram a partir do governo de Michel Temer, estão contribuindo para melhorar o potencial de crescimento da economia. Esse é um dos motivos pelos quais ocorrem seguidas “surpresas” na divulgação do PIB, com demonstração de resiliência mesmo com o ciclo de alta nos juros. E também pode explicar por que as novas projeções de crescimento não embutem maiores riscos inflacionários. A análise é da economista Zeina Latif, sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

“Do governo Temer para cá, a gente teve uma arrumação da macroeconomia, aos poucos retomando taxa de investimentos no país. E algumas reformas estruturais podem estar contribuindo na margem para melhorar o potencial de crescimento do país”, afirmou em entrevista ao InfoMoney.

Zeina afirma que, em seus modelos, a previsão era de que o ciclo de aperto monetário poderia levar o país a uma recessão branda ou, pelo menos, um quadro de estagnação, mas que foi percebida uma resiliência da economia. Para a economista, nem tudo pode ser explicado pelos estímulo artificiais recentes ou pelo fato de o clima ter favorecido o PIB agrícola. “Isso tudo tem peso, mas muito possivelmente tem efeitos cumulativos de reformas e da própria estabilidade do ambiente macroeconômico”, explicou

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Sobre a inflação, Zeina não vê maiores riscos de demanda vindos nem do exterior, com uma possível recuperação do dólar com os juros subindo nos Estados Unidos, nem do mercado de trabalho brasileiro, porque a geração de emprego está estagnada e porque a taxa de desemprego tem recuado mais pela queda na taxa de participação. Do ponto de vista dos salários, o processo de recomposição também está se acomodando, segundo a economista.

Ela também comentou sobre a reforma tributária, que foi aprovada pela Câmara dos Deputados na madrugada da sexta-feira (7). Zeina diz que esperava um texto mais ambicioso do que o que foi negociado, mas destacou que o sistema atual é tão confuso que só a simplificação proposta já será um passo vital para o país, que está ficando muito para trás em termos de concorrência internacional.

Leia abaixo, os principais trechos da entrevista:

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O PIB surpreendeu no 1º trimestre e as projeções estão sendo elevadas. Isso foi pontual, pelo desempenho do Agro?

Quando a gente olha o desempenho da economia brasileira, tem fatores mais pontuais, como o clima ajudando na parte de alimentos, da safra agrícola. Mas mesmo no Agro, nem tudo foi sorte porque teve um bom clima. Estamos falando de um setor que tem obtido ao longo das décadas elevados ganhos de produtividade. E isso significa potencial de crescimento também. É o setor mais dinâmico da economia nas últimas décadas. Mesmo que seja um setor não exatamente puxador de PIB, porque é pouco intensivo em mão de obra, é altamente intensivo em capital e cada vez mais sofisticado. E tem implicação em outros setores. A própria indústria consome os insumos, fertilizantes, defensivos. Impacta, é claro, no serviços e no comércio. Quando a gente olha o comportamento dessas variáveis ligadas ao consumo das famílias, os estados produtores de commodities ou do Agro tendem a ter um desempenho melhor.

Existe uma leitura de que diferença entre o PIB realizado e o potencial estaria ficando estreita.

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Essa é uma discussão entre economistas. Do governo Michel Temer para cá, a gente teve uma arrumação da macroeconomia, aos poucos retomando taxa de investimentos no país e algumas reformas estruturais podem também estar contribuindo na margem para melhorar o potencial de crescimento do país. Um exemplo clássico é o mercado de trabalho. A geração de vagas superou as expectativas. O efeito que a gente chama de composição não explica, com atividades intensivas em trabalho como o setor de serviços em algum momento, ou o comércio puxando. Esse efeito pode ajudar marginalmente. Começaram a aparecer em trabalhos acadêmicos que talvez as duas reformas do Temer de fato tenham trazido impacto no mercado de trabalho. Outras reformas estruturais foram feitas, o que vai acumulando efeito em termos de potencial. Provavelmente de 2016 para cá, a gente foi construindo um ambiente, tanto do ponto de vista macroeconômico, de reformas, com condições de começar a ter alguma retomada de ganho de produtividade. Então a gente olha a resiliência da economia. Quando subiu os juros, eu pessoalmente achava que era para ter tido um quadro de recessão branda, um quadro de estagnação. Mas muito possivelmente nas surpresas que a gente está tendo na atividade desde 2020, tem os efeitos cumulativos de reformas e a própria estabilidade do ambiente macroeconômico. Pode ser que o PIB potencial esteja lentamente recuperando nos últimos anos. Não é volta para o passado. No período Fernando Henrique e Lula, o potencial podia estar entre 3% e 3,5%, depois com a Dilma talvez tenha ido para 1%, era uma economia estagnada. Talvez a gente possa acreditar que já seja maior que isso.

Há um risco inflacionário com o PIB crescendo mais?

Do ponto de vista da inflação, faz diferença a razão da surpresa com a atividade econômica. O que é inflação? Ela é fruto de descasamento oferta e demanda. Estimulou a demanda, teve inflação. Mas será que também não aumentou a capacidade de oferta? Será que esse gap, uma parte da atividade não seria inflacionário porque se está falando de capacidade de expansão de oferta de alguns setores? Isso é uma discussão importante porque afeta a medida de hiato do produto e, obviamente, afeta a inflação. Então, se é verdade que está tendo algum ganho, que seja modesto, aquém do que a gente estava acostumado no passado pré-Dilma e pré fim de bônus demográfico. Se é que a gente tem tido algum ganho de produtividade é bom para o Banco Central. Quando a economia tem um baixo potencial de crescimento, baixo ganho de produtividade ou produtividade estagnada, qualquer deslize ou barbeiragem, qualquer excesso de uma política fiscal, qualquer excesso de demanda que se produziu, o impacto inflacionário é maior.

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Os avisos de que o Fed deve subir mais os juros até o final do ano sugerem que o dólar deve ser fortalecer no curto prazo. Isso traz um risco?

Em princípio, pode fortalecer o dólar mas essa não é a única variável que impacta. Não só pelo diferencial de juros em si dos EUA em relação ao resto do mundo, mas também porque mostra um vigor da economia americana. Essa discussão de que sobe os juros e mesmo assim a economia se mantém resiliente, põe os EUA numa situação relativa melhor. Porque, nos EUA, o motor de crescimento é muito mais interno. Quando o comércio mundial vai muito bem, geralmente a moeda americana se fortalece. É claro que isso é um composto. Não é uma equação de uma variável só, que é juros. Mas se a gente estiver falando que o Fed está subindo juros e que não vai gerar uma recessão, fruto de uma economia que está indo bem e que no relativo vai melhor que o mundo, claro que isso ajuda a fortalecer o dólar. Mas já tem sido assim. Quando a gente olha o dólar contra uma ampla cesta de moedas, já tem estado no campo de moeda forte há algum tempo. Não acredito numa puxada muito forte do dólar. Hoje, com o que a gente tem na mesa, acho menos provável. Para isso acontecer, para ter um superfortalecimento da moeda americana tem que acontecer alguma coisa mais grave na China, um movimento forte de aversão a risco, que não é impossível, mas hoje não está no radar. Não é esse o grande fator aqui para o Brasil.

E internamente, o mercado de trabalho pode fazer alguma pressão? Os reajustes salariais ainda estão maiores que a inflação, segundo o Dieese.

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Já teve. Do ponto de vista de inflação de salários, já passamos do pico. A gente teve correções fortes, em parte pelo efeito de comparação com a base ainda mais fraca. Tivemos perdas em termos reais naquele início de pandemia. Estavam vindo pressões salariais muito fortes e que eu ficava preocupada num contexto de um governo, naquele momento, de rasgar manuais. Se os agentes econômicos percebem que é um governo que não valoriza tanto quanto deveria a inflação baixa, isso gera remarcações e repasses. A empresa aceita o reajuste salarial e, em compensação, repassa tudo para preços. Esse cenário trazia preocupação. Mas, por mais que a gente tenha hoje uma taxa de desemprego que esteja baixa, possivelmente abaixo do que seria o estrutural, olhando a dinâmica do mercado de trabalho, estabilizou. E quando a gente olha do ponto de vista do crescimento dos rendimentos, aquilo que era uma variação de dois dígitos agora já está acomodando. Acho que tinha motivo para lá atrás o BC ter tido uma dose de conservadorismo porque tinha um retrato de mercado de trabalho que precisava ser monitorado. Mas eu diria que o pior já passou.

Por que os preços dos serviços estão mais teimosos no atual processo de desinflação?

Economia às vezes parece um pouco medicina, você tem que olhar um sinal vital aqui, outro ali, e tenta traçar um diagnóstico. A dinâmica do setor de serviços pode ter alguns elementos mais transitórios e outros nem tanto. Inflação de serviços é sempre mais resistente, é uma característica natural. Mas se fala que parece mais resistente que no passado. Tem uma parte que é demanda, tem uma parte de repasse de custos para recuperar as margens que ficaram comprimidas, mas pode ter também alguma parte, algum componente de mudança de preço relativo. Falamos que a pandemia mudou os hábitos. Um exemplo: o jovem não que comprar um carro, ele anda de transporte coletivo ou pega um Uber. Usa o dinheiro para assinar um streaming ou compra iPhone mais sofisticado, com mais serviços embutidos. Ou viaja com a família. Tem uma mudança no padrão de consumo das pessoas e a demanda por serviços, de uma forma geral, está subindo. Está aumentando a demanda por serviços e está aumentado essa participação no PIB. Isso possivelmente tem influência nos preços relativos. No fim do dia, é demanda, mas não é demanda agregada, é uma demanda específica que faz essa mudança de preços relativos.

O PIB mais forte pode contribuir para uma maior arrecadação e permitir ao governo cumprir as metas expostas na nova regra fiscal?

Claro, isso sempre ajuda e esse foi o raciocínio, na minha opinião equivocado, do ministro Fernando Haddad, quando ele falou que estavam deprimindo a economia e isso vai bater na arrecadação. Claro que tem esses componente, mas a gente sabe que esse efeito é mais marginal. Quando a gente viu as surpresas com a arrecadação no passado recente, no governo Bolsonaro, não era só atividade, era commodities, royalties do petróleo, dividendos da Petrobras e toda a arrecadação ligada a isso. A surpresa tinha a ver com os setores que estavam puxando. E obviamente a inflação do IPA acima do IPC, que infla a arrecadação. Pega qualquer produto, com a inflação do atacado lá em cima, as empresas pagam imposto alto. Quando pega esse dado da inflação e deflaciona pelo IPCA, claro que vai dar um ganho real tremendo. Hoje não tem essas coisas, hoje o IPA está no campo negativo, ou próximo de zero, e não tem essa ajuda que poderia vir de commodities. Então, o efeito é mais marginal. As apostas do governo estão mais nas decisões do STF. Isso é uma “Escolha de Sofia”. Você não vai cumprir meta de um jeito que gere insegurança jurídica na economia. Pode ser uma “vitória de Pirro”. Pode até ter um dado de arrecadação que todos celebrem, mas está gerando uma tremenda insegurança jurídica por causa de decisões do Supremo, que são polêmicas. Tem que tomar cuidado.

A queda na Selic ajudaria, com o custo mais baixo da dívida pública?

Vai depender da curva de juros. Não é exatamente a Selic. É a confiança do processo de desinflação. Óbvio que, no fim do dia, a gente está falando do fiscal. O debate que existe hoje é que temos um governo que optou por uma estratégia de mais gastos ou que, pelo menos, não vai avançar em agendas de contenção de gastos. Isso significa déficit público, é só olhar nas projeções do Focus. Ninguém comprou o acabou entregando superávit. Tem, portanto, um equilíbrio macroeconômico que é pior, de juros mais elevados. Se a gente tiver uma surpresa, pode pensar estruturalmente em juros mais baixos. Mas o próprio Banco Central está falando que trabalha com juros neutros de 4,5% a 5%. Isso nitidamente é o fiscal, essa é a percepção, de que é um equilíbrio macroeconômico de juros mais elevados. Claro que, se é para falar de alívio para valer na curva de juros e, portanto, nos juros da dívida, no fim do dia é o fiscal. Isso não é o Banco Central. O BC até pode ficar ‘dovish’ e cortar mais os juros, mas gente sabe dos limites dessa estratégia quando não tem condições para isso.

O Congresso tem agendas importantes, como a reforma tributária, aprovada na semana passada. Que tipo de fôlego isso pode dar ao governo?

São efeitos cumulativos. Tem essas estimativas que o Bernard Appy apresentou e não tenho condições de dizer se é por aí mesmo. Mas eu não gosto das modificações que estão sendo feitas. É uma pena, a gente teve oportunidade de fazer uma coisa mais ambiciosa. Só que tem a política. Mas mesmo assim, perto do que é hoje, com a gente não conseguindo ter ideia da carga tributária de nenhum setor. E dentro de um setor tem cargas tributárias diferentes de empresa para empresa. A alíquota pode variar, as regras de dedução podem variar, depende do CEP, da empresa, as bases de cálculo são diferentes. Falam que o governo não está apresentando estimativas, mas é praticamente impossível, não se consegue. A confusão hoje é tanta que eu numa entrevista do Appy que se for somar o que tem de alíquotas desses cinco tributos, chega na casa do milhão. É tão maluco o sistema, gera tanto estranhamento para as empresas de fora que, mesmo que saia muito aquém do que a gente gostaria ou do que poderia julgar possível, o fato é que mesmo assim é um passo importante, vital. Porque a gente está ficando muito para trás.