Kawall: Brasil não pode entrar num regime em que a despesa é obrigatória e a receita é desconhecida

Ex-secretário do Tesouro vê estimativas de arrecadação superestimadas e risco de a Selic não cair tanto quanto o esperado devido ao risco fiscal

Roberto de Lira

Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro Nacional e sócio-fundador da Oriz Partners

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A risco de descumprimento da meta fiscal sem contingenciamento de gastos em 2024 e a perspectiva de uma taxa de juros mais alta nos Estados Unidos por um tempo mais prolongado do que a projetada são dois espinhos no caminho do Banco Central do Brasil em seu atual ciclo de cortes na taxa de juros básica, a Selic. Não é algo que possa mudar a intensidade do ajuste no curto prazo, mas sim no limite até onde a política de cortes poderá ir. A opinião é de Carlos Kawall, fundador da gestora Oriz Partners e ex-secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda.

Em entrevista ao InfoMoney, ele disse ter visto na menção que o comunicado do Copom fez sobre a importância de o governo perseverar na meta de zerar o déficit no ano que vem uma tentativa de ajudar o Ministério da Fazenda a convencer outras áreas do governo a defender a manutenção da meta utilizando o mecanismo de corte de despesas. “A gente não pode entrar num regime que a despesa é obrigatória e a receita é uma variável desconhecida”, afirmou.

Kawall também disse que é possível identificar nas últimas decisões de política monetária pelo mundo a proximidade do fim do ciclo contracionista, embota as estratégias variem de acordo com as condições locais. Veja abaixo a entrevista completa:

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Após um período de ação coordenada dos principais Bancos Centrais pelo mundo de adotar políticas contracionistas desde 2021, as últimas decisões tiveram algumas diferenças. O que isso significa?

O que está claro por esse conjunto é que estamos próximos do fim do ciclo de aperto, mas o fim do ciclo enseja estratégias diferentes. Inclusive, o Federal Reserve, que não subiu os juros, pode vir a fazê-lo novamente. Isso já aconteceu com outros Bancos Centrais, como o do Canadá, que foi um dos primeiros a interromper o ciclo de alta, e depois retomou. É muito menos uma perda de ímpeto do ciclo de aperto e mais a maneira como você o encerra. Às vezes, quer dar um pouco mais de tempo para observar o comportamento futuro da atividade, da inflação, os mandatos nem sempre são iguais, a posição da inflação em relação às metas, etc. Não invalida a ideia de ter um ciclo de aperto monetário global. O que acabou afetando mais a decisão dos mercados após a posição do Fed – que nem subiu – foi mais o discurso prospectivo, que retirou muito a probabilidade de queda no ano de 2024.

Como o Brasil está posicionado nessa estratégia?

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A boa notícia é que, mesmo na presença dessa indefinição em relação ao ciclo de política monetária global, todo esse estresse que os mercados estão vivendo, o Brasil está com uma estratégia muito bem delineada, anunciada, e estamos conseguindo reduzir a Selic. Já cortamos 1 ponto percentual e anunciamos que vamos fazê-lo na mesma magnitude nas próximas reuniões. A dúvida do mercado é muito mais se vai acelerar ou não, num momento em que as políticas monetárias globais estão restritivas, com alta de juros lá fora. Em outros momentos, a gente já teria visto isso se expressar através de aumento do prêmio de risco e aumento de dólar, gerando dificuldade para que a nossa estratégia de corte de juros sem mantivesse. Nesse momento, isso não está sendo assim.

O comportamento do preço internacional do petróleo pode mudar a percepção do BC sobre o cenário de inflação?

Em relação ao petróleo, acho que não. O aumento do preço tem evidentemente impacto no índice cheio. É a queda artificial de preços de combustíveis e de energia no ano passado, antes da eleição, que está jogando o (IPCA) 12 meses para cima. Mas se olhar a inflação de serviços dos últimos três meses, na ponta, anualizar e olhar prospectivamente, o lado dos serviços surpreendeu para baixo. Esse é o processo mais difícil da inflação, não só aqui, mas lá fora também, com o mercado de trabalho apertado. Esse não é o problema que a gente está enfrentando agora. Pelo contrário, se fosse o petróleo caindo e os serviços lá em cima, aí seria um problema para o BC.

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E a mudança de expectativa com os juros longos nos Estados Unidos após o Fomc?

Isso não é trivial. Até o momento, não impediu que a estratégia do BC fosse mantida, mas pode ter repercussão no tamanho do ciclo (de queda da Selic). Menos na sua intensidade no curto prazo – esse está muito mais calibrado frente ao juro real, frente à inflação de serviços, frente a essa realidade desinflacionária. Mas o ponto até onde vai poder reduzir a taxa de juros, aí sim o que está acontecendo lá fora pode ter repercussão.

Qual poderia ser o impacto para a Selic no final do ciclo?

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Hoje, continuamos (a projeção da Oriz) com 9%. Mas eu diria que, em termos de risco, já houve um momento que minha dúvida era se ia ser menos do que 9%. Hoje, minha dúvida vai no sentido contrário: será que é mais do que 9%? Esse é exatamente o momento que a gente tem em função dessa mudança de rumo lá fora da política monetária.

O Copom voltou a mencionar o fator fiscal em seu comunicado. A meta de primário para 2024 pode cair?

O governo, estrategicamente, não está querendo fazer esse tipo de definição agora. Provavelmente, vai protelar para as votações da LDO, da própria Lei Orçamentária, mais para o final do ano. E é no final do ano que essa definição se materializaria. Esse é o fator a mais que o BC reforçou na sua comunicação e que coloca um pouco de areia nessa percepção de que poderia em dezembro ou janeiro acelerar o ritmo. De um lado, a gente pode estar na presença de uma piora na meta fiscal, o que não ajudaria. De outro, pode ser que a gente observe até lá uma alta de juros nos EUA novamente e maior pressão na taxas de juros internacionais, que sinalize que o juro não vai cair tanto. Se estou no final do ano com um juro mais baixo, mudança de meta fiscal, e o BC percebe que não vai conseguir cortar tanto, por que ele aceleraria? Minha linha interpretação da comunicação do BC é nessa direção. O orçamento (da Selic) talvez seja menor, em função da meta fiscal e em função do próprio Fed, mesmo que possa vir a ter uma inflação benigna do ponto de vista dos núcleos.

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Falando na questão fiscal, a arrecadação mostrou queda pelo terceiro mês seguido em agosto

O que está acontecendo é uma correção, não da atividade econômica. Não estamos na presença de uma atividade econômica mais fraca, ela está mais forte. É muito mais uma correção da composição do crescimento econômico em relação ao que a gente teve na pandemia. A pandemia privilegiou o comportamento de consumo de bens, que favorece a arrecadação. Agora, está voltando uma normalização de g tributária frente ao PIB. O PIB está crescendo na direção de uma outra composição, com mais consumo de serviços, mais agricultura, que são setores subtributados na economia. A gente sabe que a valorização da commodities ajudou muito, o que gerou inclusive inflação muito alta. Tudo isso gerou uma bonança na arrecadação e agora a gente está caindo na real. É uma arrecadação menos pujante, por conta dessa volta ao tipo de funcionamento da economia que nós tínhamos antes da pandemia, que não é tão favorável assim à arrecadação tributária.

Como há uma escolha de ajuste fiscal pela receita, isso ajuda a comprometer ainda mais o objetivo de resultado primário presente no arcabouço?

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Há um erro da estratégia do governo que é imaginar que ele consiga facilmente elevar a arrecadação tributária com todas as medidas que têm anunciado. Acho que vai ter muita dificuldade de arrecadar aquilo que ele está propondo. E além disso, as estimativas que ele tem feito da arrecadação tributária também são superestimadas pelos motivos que citei antes. A arrecadação não está surpreendendo para baixo, a grande surpresa foi a alta que ela teve nesses últimos anos. Agora, ela está se normalizado frente ao funcionamento mais regular, mais normal da economia.

É inevitável que o governo tenha de contingenciar gastos no ano que vem?

Inevitável não, porque existe dentro do próprio governo a tese de mudança da meta (de resultado primário). Existe um volume de contingenciamento de até 25% que poderia ser feito nas despesas discricionárias, que estão orçadas em torno de R$ 200 bilhões, o que permitiria uma economia de R$ 50 bilhões. Então, se o governo não lançar mão desse expediente, que agora está limitado, não pode contingenciar mais do que 25%, se nem isso ele fizer e simplesmente mantiver esse volume de gastos, alertando a meta, o sinal seria muito ruim do ponto de vista das expectativas do mercado. Inclusive da própria estratégia de redução da taxa de juros.

Foi esse o sentido do alerta do BC?

O recado que o BC deu no Copom é muito na linha de ajudar o Ministério da Fazenda, que está defendendo a manutenção da meta, a fazê-lo utilizando o mecanismo de corte de despesas. A gente não pode entrar num regime que a despesa é obrigatória e a receita é uma variável desconhecida. E ajusta isso na meta, no aumento da dívida pública. Estamos num bom momento no Brasil, de crescimento, de redução de juros, queda da inflação. E tem dois riscos: um é uma situação internacional muito ruim, algo que venha de fora – que não parece ser, no momento, o cenário base – e cometer os mesmo erros do passado aqui dentro. E esse tipo de erro a gente sabe que foi repetido muitas vezes. Tem também uma dúvida ligada à transição do BC, com os novos diretores. Mas isso adquiriu um caráter muito secundário, por conta da manutenção da meta de inflação e pelo posicionamento dos novos diretores. Isso ficou como um risco menor nesse momento. O maior risco continua ligado à estratégia fiscal.

O crescimento PIB acima do esperado pode auxiliar? Há quem defenda que o PIB potencial hoje é maior do que os modelos conseguem captar.

Isso é algo sobre o que não há consenso. Não há uma maneira de capturar isso adequadamente. Os modelos sempre vão ter que se basear no passado, que é aquilo que a gente conhece. O futuro, se isso ocorreu, a gente ainda não conhece. Agora, uma coisa é clara, não é partir daí que a gente vai conseguir equilibrar o lado fiscal. Porque esse maior crescimento está se dando em segmentos da atividade que são subtributados. A Reforma Tributária está aí para tentar, a longo prazo, corrigir isso. O que não é fácil poque quem paga mais imposto apoia, mas quem paga menos é contra. Nesse sentido, é um longo caminho até gerar uma estrutura tributária mais eficiente para a economia. A gente sabe que, no curto prazo, é que tem uma dificuldade adicional para o equilíbrio fiscal do lado da receita, mesmo com a economia crescendo mais que o esperado.

O presidente do Banco Centra, Roberto Campos Neto, tem puxado um debate sobre hiato do produto e juro neutro para a economia. Essas questões vão aparecer na Ata do Copom?

Com certeza, mas mais até do que na Ata, o momento para falar sobre o hiato, entre outros temas, é o Relatório Trimestral de Inflação . Então, a grande expectativa é que possa já na semana que vem ter algum estudo no relatório. Tem uma entrevista coletiva, a mídia pode interagir e questionar em cima desses resultados mais robustos produzidos pelo BC de tempos em tempos.