Efeito Americanas

Temos uma grande chance de enfrentar os problemas de frente, com olhos muito abertos a tudo o que acontece. Com um cenário externo complexo e desafiador, é hora de agir

Carlos Daltozo

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Sobretudo no governo Dilma, aprendemos a lição sobre os efeitos das estripulias expansionistas e do artificialismo na condução da política monetária da maneira mais dura possível, que nos levaram a maior recessão da história nos anos de 2015 e 2016, excluindo períodos de pandemia e guerras. Porém, o governo atual flerta novamente com a ortodoxia, com um discurso de que um Estado mais atuante (e gastador) produzirá um maior crescimento econômico. Essa estrutura de uma máquina pública inchada, com um Estado intervencionista se reflete em um prêmio de risco estruturalmente mais alto.

No final de 2022, diante das incertezas em relação à economia brasileira, nosso time de analistas da Eleven fez um exercício de sensibilidade traçando quatro cenários possíveis para as principais variáveis macroeconômicas. Um cenário base (na época), que previa a queda da Selic a partir do segundo semestre de 2023, com inflação convergindo para a meta em 2024 segundo o horizonte relevante traçado pelo próprio Banco Central para ancorar as expectativas. O cenário pessimista, que considerava a manutenção da Selic nos atuais 13,75% em 2023 em função das incertezas fiscais além de outros dois cenários extremos, um otimista e outro muito pessimista. Esse exercício nos ajudou a ter maior sensibilidade sobre quais empresas e/ou setores tendem a se sobressair em cada um dos cenários.

O que nos chama atenção nesse exercício é que o cenário pessimista se tornou o cenário base em um curto espaço muito curto de tempo, com a revisão das estimativas por parte do mercado convergindo de um cenário para outro. Espasmos de euforia em alguns indicadores não são suficientes para frear o ímpeto expansionista do governo, ainda que mais de maneira teórica do que efetiva. A diferença agora para outras trocas de comando é a independência do Banco Central, que já sinalizou que está atento a dinâmica inflacionária. E é justamente esse o ponto focal das críticas endereçadas pelas lideranças políticas do governo que estão cada vez mais vocais contra o atual patamar de juros. Enfim, quando analisamos nosso balanço de riscos, a visibilidade ainda é baixa em relação à política econômica interna que, somada à complexidade do cenário global que também sofre um choque inflacionário, provoca maior volatilidade na curva de juros, que tem registrado saltos significativos.

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Além de toda volatilidade provocada pelo cenário macroeconômico, um evento micro também provocou efeitos colaterais, afetando principalmente o mercado de dívida corporativa. Nos últimos anos, os juros básicos em patamares historicamente baixos e o mercado de capitais aquecido abriu espaço para emissões de dívida corporativa em larga escala. Empresas aproveitaram para alongar prazos e reduzir o custo de suas dívidas.

Sob a ótica do investidor, houve um ímpeto gigantesco pelos papéis e uma das consequências foi a criação de um perigoso desequilíbrio na gestão de risco, ainda pouco difundido, além da inanição do mercado secundário. Os spreads muito baixos entre ativos de risco distintos antecipavam um ajuste inevitável, que chegou com o evento Americanas. No início de 2023 o pedido de recuperação judicial da Americanas após o anúncio de uma fraude contábil detectada pelos gestores recém-chegados deflagrou uma crise de crédito que acreditamos está apenas no início. A relevante complexidade na previsão dos movimentos da curva de juros e um ambiente típico de reprecificação de risco como o atual pode machucar muitas empresas alavancadas e investidores.

Os bancos precisaram reforçar seus balanços aumentando as provisões para crédito de liquidação duvidosa, o que impactou negativamente o lucro. Agora, estão mais cautelosos na concessão de novos empréstimos, exigindo mais garantias. As empresas estão com dificuldade de rolar suas dívidas e tem buscado soluções até mesmo heterodoxas para reduzir o custo do serviço da dívida. Com a Selic permanecendo no patamar atual por mais tempo a expectativa é de lucros menores nos próximos trimestres. Já a ponta dos investidores também está cautelosa na aquisição de dívidas corporativas, exigindo maiores prêmios com prazos menores para entrar em novas emissões. Empresas como Petz, Grupo SBF, Sabesp e Neoenergia recentemente postergaram planos de captação de dívida, enquanto os fundos de crédito privado sofreram resgates da ordem de R$ 66 bilhões até o início de março.

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Ainda, no cenário externo o ambiente de juros e inflação elevados além de menor liquidez global começa a produzir as primeiras vítimas. As quebras do Silicon Valley Bank (SVB) e do Signature Bank levaram o Banco Central americano a socorrer as instituições financeiras para proteger os depositantes, enquanto os maiores bancos americanos desenham uma proposta de socorro ao First Republic. Na Europa, o já há algum tempo cambaleante Credit Suisse também precisou ser socorrido pelo governo suíço, que precisou fazer um aporte de US$ 54 bilhões após a instituição financeira admitir “fragilidades” em suas demonstrações contábeis. Esse valor representa 8,6% do PIB da Suíça e seria o equivalente aos Estados Unidos aportar US$ 560 bilhões em uma única instituição considerando o mesmo percentual do PIB americano. O banco suíço, pelo seu tamanho e interligação no sistema financeiro global provoca uma preocupação muito maior de risco sistêmico do que os bancos regionais americanos. Esse risco poderá fazer com que os bancos centrais nos EUA e na Europa antecipem o final do ciclo de aperto monetário ou até mesmo o início de corte de juros.

Toda essa complexidade de cenário aqui e lá fora traz desafios adicionais para a condução da política econômica brasileira e o mercado segue em compasso de espera pelo anúncio do novo pacote fiscal prometido pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad para esse mês de março. A expectativa é de que o anúncio traga medidas efetivas para ancorar as expectativas sobre a trajetória da dívida e maior previsibilidade, que abrirá espaço para o Banco Central ao menos iniciar o debate sobre corte de juros e destravar a armadilha de crédito.

Temos uma grande chance de enfrentar os problemas de frente, com olhos muito abertos a tudo o que acontece. Com um cenário externo complexo e desafiador, é hora de agir. Visão e ação de longo prazo demandam esforços e resiliência para enxergar o futuro, acreditar no caminho e não ceder às tentações dos atalhos. Não precisa dar tudo certo, só não pode dar muito errado.

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Carlos Daltozo

Head de Research da Eleven Financial Research