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A regulação pode ampliar a concorrência no sistema financeiro: o caso das criptomoedas

A boa regulação não está nos princípios, mas sim nos detalhes
Por  Bruno Meyerhof Salama
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar
Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso meu carimbo dando o sim
Sim, sim, sim
Raul Seixas, O Carimbador Maluco

Na simpática canção dos anos 80, a regulação nos foi apresentada como um jogo pérfido. Um carimbador maluco permite aos jovens encararem a aventura de “viajar pelo universo”. Mas é puro capricho: “o que eu queria mesmo”, confessa, era “ir com vocês”. “Mas já que eu não posso”, prossegue, “boa viagem e até outra vez”!

Brincadeiras à parte, não há dúvida de que – no Brasil como em qualquer outra parte – a regulação seja frequentemente utilizada como barreira de entrada e óbice à competição.

Mas daí não segue que toda a regulação seja pura perfídia. A vida econômica no sistema de capitalismo regulado em que se vive hoje é mais complicada do que isso.

A regulação é também uma oportunidade de organizar regras do jogo mais limpas, e, em particular, de fomentar a competição. Vamos aos fatos.

Uma diretiva da Financial Action Task Force on Money Laundering, ou FATF, determinou que as corretoras de ativos virtuais (ou “exchanges”) obtenham licenças dos reguladores nacionais. A exchanges devem, ademais, implantar uma série de mecanismos para identificação de operações. Seguindo os rumos mundiais, portanto, mais cedo, mais tarde, as exchanges passarão a ser reguladas com mais rigor no Brasil.

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Isto é bom ou ruim? Depende.

A regulação das exchanges será um momento crucial para moldar sua relação com o sistema bancário tradicional. O espírito da diretiva internacional é coibir a lavagem de dinheiro e o financiamento de terrorismo.

Mas não é preciso parar aí. Um incremento na regulação pode representar mais um passo na institucionalização deste setor.

Vejamos o caso das fintechs brasileiras. As primeiras empresas a realizar profissionalmente a aproximação online de emprestadores e tomadores – as fintechs de crédito chamadas de “peer to peer” – sofreram com processos penais e acabaram fechando suas portas. A situação só mudou depois que o Banco Central permitiu a criação das Sociedades de Empréstimo entre Pessoas, ou SEPs.

Processo similar aconteceu com outro tipo de fintech hoje regulada pelo Banco Central, as Sociedades de Crédito Direto, ou SCD. O carimbo do regulador permitiu a concessão de crédito sem o fantasma da punição por agiotagem que antes lhes assombrava.

Após sua admissão no rol das instituições financeiras reguladas, as SCDs começaram a receber proteção contra eventual conduta anticoncorrencial dos bancos comerciais com os quais se relacionam.

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No Brasil, só os bancos comerciais podem oferecer conta de depósitos. Isso lhes coloca em uma posição de força frente às fintechs que necessitam acessar essas contas para movimentar recursos dos clientes. Enquanto as SCDs eram apenas entidades comerciais não reguladas, era possível aos bancos fecharem a torneira do acesso das fintechs às contas dos clientes.

Isso mudou em março de 2018.  O Banco Central emitiu uma resolução vedando aos bancos comerciais “limitar ou impedir, de qualquer forma, o acesso de instituições de pagamento e de outras instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil” a serviços como conta corrente, TED, DOC, entre outros.

Trocando em miúdos, é assim. Existe um cliente da fintech que é, ao mesmo tempo, correntista de um banco comercial. Este cliente concorda em efetuar pagamentos à fintech por meio de débito automático na sua conta do banco comercial. O banco comercial não pode impedir que assim ocorra.

Parece bom, mas o assunto não está 100% resolvido. Resta ver que preço os bancos cobrarão pelo serviço que, agora, estão proibidos de recusar.

Mas a lição é a seguinte: antes da regulação, ninguém se importava com as fintechs. Quem abria uma delas era uma espécie de “empreendedor regulatório”. Operava em uma zona cinzenta arriscada e podia até ter o negócio fechado por algum carimbador maluco.

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Mas agora seu status regulatório mudou e as regras concorrenciais devem ser observadas inclusive pelos seus concorrentes.

Isso nos traz de volta à provável regulação das exchanges de criptoativos, que, como dissemos, cedo ou tarde deverá se ampliar. Hoje, os reguladores enxergam as exchanges de criptos com grande suspeita. Mas depois de reguladas (provavelmente, pelo Banco Central), isso poderá mudar.

Um tema sensível é justamente a proteção concorrencial das exchanges em face dos bancos comerciais.

A relação entre os bancos e as exchanges nunca foi totalmente pacífica. Há anos, as exchanges acusam os bancos de encerrarem de forma unilateral suas contas-correntes.

Essa relação conflituosa ocorre não apenas no Brasil mas no mundo todo também desde que as primeiras exchanges passaram a existir. O ponto é: sem essas contas correntes, o funcionamento das exchanges fica severamente comprometido.

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Eis o porquê. Antes de comprar moedas virtuais, os clientes das exchanges precisam depositar uma quantidade de Real na conta da própria exchange, fazendo um TED ou DOC (as exchanges geralmente não aceitam depósitos em dinheiro em espécie por conta dos riscos de lavagem de dinheiro).

Transferido o valor em reais para conta da exchange no banco, o cliente fica com um crédito, podendo comprar, por exemplo, Bitcoins dentro da plataforma virtual. Quando vende seus Bitcoins, ocorre a mesma coisa. O cliente dá uma ordem de venda, que é processada. Depois, o cliente precisa retirar o dinheiro da conta da exchange para sua própria conta corrente.

Ocorre que os bancos, alegando “desinteresse comercial”, têm por vezes encerrado unilateralmente as contas-correntes das exchanges. Com isso, o serviço fica comprometido. Os clientes vão então migrar para outra exchange, ou simplesmente desistir de negociar Bitcoins por lá.

Há algo de esquisito na alegação dos bancos de “desinteresse comercial”. Teoricamente, pelo volume de valores envolvido, as exchanges seriam excelentes clientes.

Para se ter uma ideia, em 29 de novembro 2017, quando o preço do Bitcoin rompeu os US$ 10 mil, foram movimentados mais de R$ 110 milhões em um único dia pela segunda maior exchange do mercado. Com a alta do preço do Bitcoin este ano, só neste mês de junho, no Brasil, foi movimentado em Bitcoin mais de R$ 1 bilhão. No acumulado do ano, já foram movimentados R$ 2,89 bilhões.

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É bem verdade que os bancos têm receio de comprometerem-se com questões ligadas à lavagem de dinheiro. Não é simples. É um grande imbróglio!

A briga é tamanha que o caso já foi judicializado. Recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que as instituições financeiras estão autorizadas a encerrar as contas-correntes de forma unilateral. Mesmo com a derrota nos tribunais, as exchanges alegam que esta prática fere o direito concorrencial e levaram o caso para o CADE.

Tudo isso nos conduz de volta ao tema da proteção do regulador às entidades que ingressam no quadro das entidades autorizadas. O princípio básico da diretriz internacional é evitar terrorismo e lavagem de dinheiro. Só que a boa regulação não está nos princípios, mas sim nos detalhes.

Bem-vinda seria uma regra que, ao lado de estender a mão dura de regulador, exigindo a compilação de milhares de dados diariamente, trouxesse também a tiracolo um impulso para fomentar verdadeiramente a competição.

Aos bancos não mais seria, então, facultado o cancelamento de contas destes novos clientes – e concorrentes – por mero desinteresse comercial.

Sobre os autores:

Bruno Meyerhof Salama – Lecturer em UC Berkeley Law School nas disciplinas de Law and Economics, Law and Technology e Law and Development. Advogado no Brasil e nos Estados Unidos. Twitter: @Brunomsalama

Guilherme Bandeira – Doutorando na Faculdade de Direito da USP, mestre (LLM) em teoria do direito pela Universidade de Nova Iorque (NYU), bacharel em direito pela FGV-SP e filosofia pela USP.

Bruno Meyerhof Salama Lecturer em UC Berkeley Law School nas disciplinas de Law and Economics, Law and Technology e Law and Development. Advogado no Brasil e nos Estados Unidos. Integrou o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Doutor em direito por UC Berkeley, mestre em economia pela FGV e bacharel em direito pela USP

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