Pelo fim da cultura do chute

Não basta afirmar que os encargos trabalhistas são piores que a “nova CPMF“. Uma reforma tributária tem que ser apoiada por evidências sólidas

Alexandre Schwartsman

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O ministro da Economia, Paulo Guedes (Crédito: Agência Brasil)
O ministro da Economia, Paulo Guedes (Crédito: Agência Brasil)

Em sua cruzada pelo retorno da CPMF, o ministro Paulo Guedes afirmou que o imposto, se pequenininho, “não machuca”, notando que, embora ruim, seria uma alternativa melhor do que os encargos que incidem sobre a folha salarial. Em particular, sugeriu que os encargos contribuiriam para a elevada taxa de desemprego.

São argumentos que soam bem ao ouvido de economistas. Toda teoria do consumidor se assenta na comparação entre alternativas que não são “boas” ou “ruins” no sentido absoluto dos termos, mas melhores ou piores.

Faria, portanto, sentido optar por algo que é percebido como “ruim”, mas melhor do que a alternativa. Isto dito, não basta postular uma hierarquia de alternativas; é necessário construí-la e a verdade é que Guedes está nos devendo evidências a respeito.

Comecemos pelo efeito dos encargos trabalhistas. Do ponto de vista legal, parcela deles é de responsabilidade do trabalhador, parcela do empregador, mas isto não responde à pergunta fundamental, a saber, sobre quem incide o imposto na realidade?

Para entender o problema imagine por um segundo que o trabalhador oferte certa quantidade de horas de trabalho por mês, independentemente do valor da remuneração, produzindo R$ 1.000/mês. Neste caso a empresa está disposta a pagar, no máximo, R$ 1.000/mês, pois se pagar acima disto terá prejuízo ao contratá-lo.

Vamos supor, também provisoriamente, que há outras oportunidades equivalentes de emprego, de modo que, caso a empresa pague menos do que R$ 1.000/mês, o trabalhador pode se colocar em outro lugar pelo mesmo valor. Sob estas circunstâncias, o salário será R$ 1.000,00/mês.

O que ocorreria com salário e emprego caso o governo estabelecesse um imposto de R$ 200/mês, a ser pago pela empresa?

Deve ficar claro que a empresa não irá aumentar o salário para R$ 1.200/mês, pois o valor da produção do trabalhador permanece em R$ 1.000/mês. Ou seja, a empresa continuará desembolsando este montante, qualquer que seja a tributação sobre a folha, mas agora o trabalhador só receberá R$ 800/mês, enquanto R$ 200/mês serão recolhidos aos cofres públicos.

Muito embora seja a empresa que faça o pagamento ao fisco, o imposto, na prática, recai sobre o trabalhador, que antes recebia R$ 1.000/mês e agora recebe R$ 800/mês.

Este resultado, contudo, decorre diretamente da suposição que o trabalhador oferta uma quantidade fixa de horas de trabalho, sem se preocupar com o valor do salário.

Caso a quantidade de horas ofertadas também seja sensível ao salário (mais horas seriam ofertadas com salários líquidos de impostos mais altos e vice-versa), o empregador não conseguiria repassar todo peso do imposto ao trabalhador e o nível de emprego cairia em resposta ao aumento de impostos.

O exemplo é extraordinariamente simplificado, mas traz uma verdade bastante geral. A incidência do imposto depende da sensibilidade da oferta ao preço: se a oferta for pouco sensível, é o ofertante (no caso o trabalhador) quem arcará com a maior parte do imposto; se for muito sensível, será sobre o comprador (no caso a empresa) que incidirá a maior parte do imposto.

A tese de Guedes presume que encargos trabalhistas recaiam principalmente sobre as empresas, elevando o desemprego, mas, como visto, isto requereria que a oferta de trabalho fosse muito sensível ao salário.

Até onde sei, a evidência aponta no sentido contrário, mas, de qualquer forma, caberia ao ministro trazer estudos que embasassem sua conclusão.

É verdade também que supusemos acima que o trabalhador sempre terá alguma alternativa de emprego ao salário de equilíbrio inicial (R$ 1.000/mês). Mas isso só ocorrerá se a economia estiver próxima do seu potencial, que não é o caso do Brasil hoje.

A taxa de desemprego se encontra próxima a 12% da força de trabalho (sem contar subocupados e desalentados, que elevam a taxa de subutilização da mão-de-obra para mais de 24%).

Por outro lado, o desemprego no Brasil em 2013/14 era da ordem de 7% (e a taxa de subutilização na casa de 15%), quando a economia operava acima do seu potencial (daí a inflação elevada e os déficits externos substanciais), mesmo com encargos trabalhistas em nível semelhante aos de hoje.

Vale dizer, não parece haver evidência que os encargos em si tenham efeitos substanciais sobre o nível de desemprego, embora possam, dependendo, dentre outras coisas, da sensibilidade da oferta de trabalho a preços, afetar a taxa “natural” de desemprego.

Deve ficar claro, no entanto, que o elevado nível de desemprego hoje não reflete a taxa “natural” (que estimamos no intervalo 9.0-9.5%), mas sim a lenta recuperação cíclica da economia depois da recessão de 2014-16.

Concluindo, caso o ministro queira demonstrar que os encargos trabalhistas são ainda piores do que a CPMF, há uma considerável lição de casa a fazer.

A formulação de políticas públicas, dentre as quais se sobressai a reforma tributária, não prescinde de evidências sólidas, que até agora são a ausência mais notável das propostas do governo.

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Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.