Nomadismo digital é uma realidade para 35 milhões de pessoas no mundo

Brasil emitiu 475 vistos para estrangeiros desde a regulamentação da atividade

Martha Alves

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A ideia de trabalhar remotamente e viver se deslocando com uma mala e um computador embaixo do braço em busca de experiências tem atraído cada vez mais pessoas ao nomadismo digital. Este estilo de vida cresceu com o período de home office forçado pela pandemia de Covid e, em 2022, já somava 35 milhões de adeptos no mundo com projeção de chegar a 1 bilhão em 2035, segundo relatório global da Fragomen, empresa especializada em migração.

Bruno Andrade, professor de liderança dos MBAs da Saint Paul Escola de Negócios, afirma que o período de home office forçado funcionou como um laboratório em experiências práticas de tecnologias no mundo inteiro. “A aceleração nas ferramentas para atender a demanda tornou viável tecnicamente um trabalho distante e ao mesmo tempo presente. Esse é um caminho que foi criado pela pandemia, sedimentado pelo experimento, pela liderança e viabilizado pela tecnologia”, diz Andrade.

Fabrício César Bastos, coach de carreiras, diz que ferramentas como softwares de videoconferência e aplicativos de gerenciamento de projeto e de conversação também abriram portas para vários segmentos que não eram tão flexíveis para realizarem o trabalho remoto, como das carreiras de áreas de finanças e mercado financeiro. “Profissões mais tradicionais como contadores e planejadores financeiros podem trabalhar como nômades digitais. Eles podem mandar sugestões [de planejamento financeiro] de acordo com o perfil do cliente, fazer reuniões [remotas] mensais e conversar online [por aplicativos”, diz Bastos.

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Andrade chama a atenção ainda para as mudanças de comportamento dos profissionais que estão buscando mais controle no trabalho e flexibilidade e das empresas que entenderam que não dá mais para retroceder. “As pessoas mudaram e não querem deixar o controle sob suas escolhas delegados às empresas. Hoje, elas têm necessidade de controlar o trabalho, a forma que fazem o local e o horário.”

Para Lucia Madeira, presidente da ABRH-RJ (Associação Brasileira de Recursos Humanos no Rio de Janeiro), trabalhar em um escritório com ar condicionado e sala de jogos já não é mais atrativo nem o sonho de muitos profissionais. Ela diz que alguns mercados, mais do que outros, precisam contratar mão de obra fora da sua região e existe toda a possibilidade de acontecer no mercado financeiro. “A empresa consegue ter acesso a um mercado muito maior de pessoas qualificadas que não conseguiria contratar porque elas não querem ficar presas [a um emprego presencial].”

Apesar da vida de um nômade digital parecer atrativa, a rotina não é para todos os profissionais e exige softs skills para manter a produtividade e a capacidade de concentração em lugares diferentes e estímulos que podem distrair. “Essa pessoa precisa ter o perfil de autogestão, planejamento, organização e saber conectar o estilo de vida dela com o trabalho. Também tem o outro lado da moeda que é ficar 24 horas por 7 dias por semana conectado ao trabalho”, diz Bastos.

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Outra capacidade que o nômade precisa desenvolver é a de criar conexões e vínculos mais profundos com os colegas de trabalho mesmo a distância. Andrade ressalta que o profissional precisa se fazer presente e tentar conhecer as pessoas mesmo que por videoconferência. “No dia a dia vai ser importante para que consiga fazer bem seu trabalho, porque no fim do dia ele precisa de outras pessoas para se desenvolver bem.”

A presidente da ABRH-RJ afirma que a experiência de ser nômade é enriquecedora para o profissional porque ele pode aprender outras línguas e culturas. Mas ela alerta que essa vida nômade pode dificultar a construção de uma reputação profissional devido a menor visibilidade e interação com as
pessoas da empresa que trabalha.

“Ele tem que cuidar de manter a sua visibilidade nas redes, no LinkedIn, nos grupos ou participar de Congresso e palestras. Não pode achar que vai ficar trancado em um quarto e vai ser descoberto, precisa mostrar o valor que agrega a empresa.”

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Vistos de nômade digital

Vários países já oferecem vistos especiais para que nômades digitais possam residir legalmente e trabalhar de forma remota por um determinado tempo. Na Europa, países como Portugal, Noruega, Malta, Hungria, Itália, Espanha, Croácia, entre outros, já oferecem essa modalidade de visto. Para solicitar o visto, a pessoa precisa pesquisar as exigências legais, como comprovar renda para viver naquele país.

Bastos afirma que Lisboa tem se tornado um super polo de tecnologia e isso tem atraído pessoas que querem ter qualidade de vida e poder desfrutar de um lugar na Europa para morar e trabalhar. “Para poder trabalhar as pessoas buscam cidades que são amigáveis, receptivas para locação de imóveis, com internet de qualidade e com qualidade de serviços, por exemplo, de transporte.”

No Brasil, a atividade dos nômades digitais é regulamentada desde 2021 por uma resolução do Conselho Nacional de Imigração, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Desde o início da política migratória, o Ministério das Relações Exteriores emitiu 475 vistos para nômades, 167 apenas neste ano. Americanos, alemães, ingleses, franceses e suíços estão entre as nacionalidades que mais pediram o visto, segundo o órgão.

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O visto temporário para nômade deve ser requerido em qualquer repartição consular brasileira no exterior, com a apresentação de documentos previstos na resolução, como de identificação, seguro de saúde válido no território nacional, atestado de antecedentes criminais do país de origem e comprovação da condição de nômade digital. O prazo inicial da residência prevista é de até um ano e pode ser renovado por igual período.

Gerente de produtos se tornou nômade após ter burnout

Uma síndrome de Burnout, esgotamento físico e emocional causado por excesso de trabalho, foi o que fez a paulista Mariana Gualdi, 29, gerente de produtos no banco Cora, repensar a sua relação com o trabalho. Há um ano, ela trocou o conforto do home office na casa dos pais pela liberdade de ser nômade digital e trabalhar remotamente se deslocando pelo país.

“Quando tive Burnout entendi que a gente está aqui de passagem e que eu estava sobrevivendo [no meu antigo emprego]. Antes, eu pensava que tinha que fazer o trabalho engolindo sapos porque aprendi na faculdade de administração de empresas”, diz Gualdi, que no momento da entrevista estava em Belo Horizonte.

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A ideia de se tornar nômade começou em 2020 quando ela entrou no Cora, mas teve que esperar o fim da pandemia de Covid para colocar o projeto em prática. No começo de 2022, Mariana deixou a casa dos pais, em Andradina, interior de São Paulo, com uma mochila e o notebook da empresa embaixo do braço para trabalhar onde a sua liberdade geográfica permite.

Ela conta que começou o nomadismo digital viajando para a casa de amigos em outras cidades e estados até ficar um pouco mais desapegada e ir a lugares que tinha vontade de conhecer. “No começo, eu ficava bastante na casa dos meus amigos, mas às vezes eu tinha necessidade de ficar em um cantinho só meu e reservava uma pousada, hostel ou Airbnb porque precisava me concentrar no trabalho”, diz Gualdi, que já passou por 27 cidades e 10 estados brasileiros.

Mariana Gualdi, nômade digital

A gerente de produtos diz que no começo da vida de nômade não conseguia ficar um mês completo em um lugar porque tinha ânsia de viver e encontrar todos os amigos devido ao período em que ficou em isolamento social por causa da pandemia. Este ano, ela tomou a decisão de ficar ao menos duas semanas em cada cidade e tem conseguido cumprir. “Com o tempo, eu fui entendendo que estava ficando cansada porque não tinha minimamente uma rotina na minha vida.”

O próximo destino da gerente de produtos é o Amazonas, mas desta vez de férias por dez dias. Depois disso, ela ainda não tem certeza sobre qual cidade pretende passar mais uma temporada trabalhando porque precisa pesquisar se o local tem um bom acesso à internet e checar com outros viajantes sobre a segurança. Ela revela que está em dúvida entre ir a Alter do Chão, um distrito com praias paradisíacas em Santarém, no Pará, encontrar algumas amigas ou voltar a João Pessoa (Paraíba).

Mesmo com todo o planejamento antes de viajar, ela admite que já passou por vários perrengues, como ter que mudar de pousada porque a wi-fi não funcionava e já perdeu um dia de trabalho em Caraíva, em Porto Seguro, na Bahia, porque uma chuva deixou o vilarejo sem internet e fechou as estradas. Ela garante que não teve problemas porque trabalha por entregas e o banco sabe do seu estilo de vida. “No meu trabalho é menos sobre a quantidade de horas que eu faço e muito mais pelas minhas entregas, mas tomo cuidado para não prejudicar a empresa e outras pessoas.”
Para Gualdi, o maior desafio mesmo de ser nômade é conseguir ter foco e disciplina para manter uma rotina mínima no trabalho e na vida, encaixando um horário para estudar, praticar atividade física e ainda aproveitar a cidade. “Você está sempre quebrando a rotina conhecendo novos lugares e manter isso para mim é o mais desafiador. A internet não é o meu principal problema, se estiver falhando, eu pego minha mochila e vou para algum café trabalhar.”

Nômade afirma que organização é fundamental

Vinícius Santana Braz, 27, analista de crédito e experimentação no banco Cora, tinha preconceito com nômades digitais até se tornar um deles, em julho do ano passado. Ele entendeu que esse estilo de vida era viável após viajar durante um mês e meio por várias cidades do nordeste como nômade com um grupo de colegas do banco.

Depois da experiência em grupo, Braz descobriu que gostava muito de viajar e queria descobrir o mundo sozinho. Ele voltou para a sua cidade Belo Horizonte e viajou de férias para a Europa. Na volta, decidiu retomar a vida de nômade digital fazendo viagens curtas e visitando amigos que ofereciam hospedagem. Nesta época, ele ainda viajava e retornava para ficar um período em casa.

Vinicius Braz, nômade digital

Em maio, Braz passou uma temporada viajando pelos Estados Unidos onde diz ter aprendido muito sobre a cultura e os negócios. No país, ele conta que teve a oportunidade de tomar um café com um consultor do Cora e trazer referências de ações de marketing de um banco americano. “Ver esse negócio é muito rico para mim e posso trazer esse aprendizado para o meu trabalho”, diz o nômade que está na Europa, onde pretende ficar três meses se deslocando por diferentes países.

Antes de iniciar cada viagem, Braz explica que faz um planejamento financeiro que inclui reserva para emergências e organiza toda a sua estrutura remota de trabalho, alugando um espaço para morar e contratando plano de internet ilimitado para não ficar na mão. “Quando estou trabalhando gosto de ter muita estrutura de trabalho levando todos tipos de cabos que vou precisar, fones de ouvido e monitor externo portátil.”

Para Braz, alguns dos maiores desafios de ser nômade é manter a sua estrutura de trabalho funcionando perfeitamente ou pegar um voo que atrasa a ponto de não chegar no próximo destino a tempo antes do início do expediente – mesmo com um horário flexível que permite compensar as horas perdidas. “O segredo para mim é ser muito organizado, planejar tudo e usar com responsabilidade a flexibilidade que a empresa me dá de trabalhar onde eu quiser desde que entregue o que foi combinado.”

Casal vendeu tudo para viver nomadismo digital

O casal de planejadoras financeiras Jacqueline Ferreira, 37, e Luna Lyra, 34, donas do canal Guarda Troco no YouTube e Instagram sobre educação financeira, decidiu se tornar nômade digital logo após a pandemia de Covid, em outubro de 2021. Elas aproveitaram que já trabalham remotamente para colocar o projeto de vida em prática.

Lyra conta que estava no final do doutorado e não aguentava mais olhar para as paredes do apartamento onde moravam, em Belo Horizonte. Ela começou a procurar um novo imóvel para alugar e todos os dias mostrava o anúncio para Ferreira, que afirmou que só mudaria de casa se fosse para ser nômade digital. Mas A decisão conjunta de mudar de vida aconteceu quando o proprietário pediu o imóvel.

Dez minutos após receber a notícia que teriam que entregar o imóvel, elas contam que começaram a vender os móveis por telefone e o restante dos objetos por meio de um bazar nas redes sociais e Whats App. Elas ficaram apenas com poucas roupas que cabiam em uma mochila e duas malas. “Eu fiz uma caixa com livros e alguns objetos com significado afetivo que eu sabia que não daria conta de me livrar e mandei pelos correios para a casa da minha mãe”, diz Lyra.

O primeiro destino do casal como nômade foi o Recife, onde ficaram cuidando da casa de uma prima de Lyra, que estava viajando. Depois, elas alugaram uma casa em Icaraizinho, na cidade de Amontada, no Ceará, por indicação de amigos. Elas contam que sempre que podem tentam negociar diretamente com o dono para ficar um período de três a quatro meses, porque é mais barato que no Airbnb.

Jacqueline Ferreira e Luna Lyra, nômades digitais

“Não estamos de férias, escolhemos um apartamento com dois quartos para fazer as reuniões com os nossos clientes. Fazemos planejamento financeiro e precisamos nos sentir seguras para tratar de assuntos que são delicados para as pessoas”, explica Ferreira, que só quebra a regra de período quando surge a oportunidade de economizar moradia ficando na casa de amigos ou parentes que vão viajar.

O projeto do casal é conhecer todo nordeste como nômades digitais, mas às vezes tem que mudar a rota devido a oportunidades de ganhar um dinheiro extra. Ferreira, que é doutora em Estatística e tem certificação CEA (Certificação ANBIMA de Especialistas em Investimentos), foi convidada a dar aulas até julho em um curso de especialização de uma faculdade em Belo Horizonte. Depois disso, elas estão planejando passar uma temporada em Sergipe.

Antes de escolher o próximo endereço temporário, o casal conta que pesquisa se o imóvel tem máquina de lavar para não gastar com lavanderia e, quando aluga por plataformas digitais, lê os comentários de usuários sobre a velocidade da internet para não ter problemas no trabalho “A gente sempre tenta calcular os custos das nossas mudanças como se fosse um orçamento mensal. Nem sempre isso é possível porque algumas cidades são mais caras, mas a gente compensa na próxima”, diz Ferreira.

Com uma vida que cabe em malas e mochilas, elas garantem que o difícil na
vida de nômade não é o deslocamento constante, mas ficar longe das pessoas que amam e as despedidas por onde passam. “Eu reclamo um pouco da mudança e quando chega perto da partida eu fico um pouco agoniada com as despedidas. Mas eu adoro conhecer novos lugares e pessoas, qualquer lugar que a gente chega tem gente legal e isso me deixa animada”, afirma Lyra.

Martha Alves

Jornalista e Mestre em Comunicação. Foi repórter nos jornais Folha de S. Paulo e Agora São Paulo e acumula experiência em comunicação corporativa