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Má ideia fora de lugar

Por que a proposta de criação de uma moeda única para Brasil e Argentina se enquadra com méritos em ambas as categorias
Por  Alexandre Schwartsman -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Há más ideias e há ideias fora do lugar. A proposta de criação de uma moeda única para Brasil e Argentina, ventilada pelo presidente Jair Bolsonaro, se enquadra com méritos em ambas as categorias. Ele já afirmou veementemente que nada sabe de economia; não satisfeito, se esforça para provar esta verdade a cada declaração.

A inspiração do monstrengo é o euro, ponto culminante (ou nem tanto) de um longo processo de integração iniciado em 1951-52 com a fundação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que modestamente permitia a livre circulação destas mercadorias num clube formado por Alemanha, França, Itália e países da Benelux.

Este embrião foi ampliado ao longo de várias décadas, tanto no conjunto de países participantes como no escopo das mercadorias. A União Europeia (UE), formada oficialmente pelo Tratado de Maastricht, é a versão mais moderna desse processo.

Trata-se, para começar, de união aduaneira, isto é, não há apenas livre circulação de bens e serviços entre seus membros, como os países pertencentes à UE se comprometem com uma estrutura tarifária comum. Em outras palavras, qualquer país-membro da UE aplica a países fora da área as mesmas tarifas.

Adicionalmente, as regras permitem a livre circulação de cidadãos da UE entre os países-membros, como firmado no Tratado de Schengen (que também inclui alguns países de fora da UE, como Noruega, Islândia e Suíça).

Para que a UE funcione a contento foram criadas instituições supranacionais, como a Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça Europeu, além de um vasto conjunto de regras a que todos os membros estão submetidos.

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Por fim, antes da adoção do euro, exigiu-se a harmonização das políticas macroeconômicas, incluído limites para déficits e dívidas, que, sabe-se hoje, não foram seguidos à risca. De qualquer forma, havia a necessidade de convergência de políticas fiscal e monetária, esta última decorrendo da fixação das moedas europeias contra o marco alemão, não só a principal economia do continente, como também a de maior estabilidade inflacionária, herança do Bundesbank.

Apesar disto, a Zona do Euro (ZE), o subconjunto dos países da UE que adotaram a moeda única, passou por uma crise de grandes proporções, cujos efeitos ainda são sentidos em vários países.

À parte a convergência incompleta das políticas macro (como exemplificado no caso grego), esta experiência revelou outras falhas na formulação do euro.

Ao contrário, por exemplo, dos Estados Unidos, onde o governo federal realiza, de modo mais ou menos automático, transferências fiscais para estados atingidos por choques específicos (pensem, por exemplo, no pagamento de seguro-desemprego para trabalhadores no Texas se o preço do petróleo cair muito), não há na Europa nada que amenize os efeitos de choques negativos (ou positivos) em cada economia da região. Também não havia (nem há) um instrumento de dívida supranacional que pudesse servir como ativo de risco mínimo para o conjunto da ZE.

Afora isto, a mobilidade de mão-de-obra é muito menor do que nos EUA, de modo que eventuais excessos de demanda por trabalho num país tipicamente se traduzem em elevação dos salários e, portanto, do custo unitário de trabalho, equivalente a uma apreciação da moeda. Os salários espanhóis, por exemplo, cresceram muito no pré-crise, elevando os custos no país relativamente à Alemanha. Apesar dos salários maiores, não houve migração significativa de trabalhadores de outros países.

Finalmente, cada governo nacional ficou responsável por seu sistema financeiro. Assim, quando houve a crise e os governos tiveram – como no caso da Irlanda e Espanha – que injetar recursos em seus respectivos sistemas bancários, a qualidade do crédito desses países se deteriorou. Como os bancos de cada país detinham títulos do seu próprio governo, cujo valor caía a cada nova emissão, criou-se um círculo vicioso, do qual só foi possível sair com a postura do Banco Central Europeu, que, na figura de seu presidente, se comprometeu a “fazer o que fosse necessário” para manter o euro, inclusive adquirir trilhões de euros de títulos dos governos da zona monetária.

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A descrição do processo europeu, com seus acertos e falhas, deixa claro o quão distante estamos da possibilidade de uma moeda única.

A começar porque o Mercosul não chega sequer a ser de fato uma zona de livre comércio, muito menos uma união aduaneira: há uma Tarifa Externa Comum, que é externa, mas longe de ser comum.

Quanto à harmonização das políticas macro, a única que há entre Brasil e Argentina é a má qualidade da política fiscal (e a nossa consegue ser ainda pior que a platina – um feito para poucos).

As taxas de inflação divergem enormemente, assim como taxas de juros. É verdade que o histórico brasileiro tem sido melhor que o argentino nesta dimensão, mas, exceção feita a alguns períodos nos últimos 25 anos, não é nada de que possamos nos orgulhar.

Também nos faltam instituições supranacionais (e nem estou falando de um banco central, mas de coisa mais básica, como uma corte binacional), livre mobilidade de pessoas, integração financeira e fiscal.

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Em suma, não temos rigorosamente nada do necessário para sequer começar a pensar em moeda única. Pior: pelo menos no caso do Brasil, dada a evolução do problema previdenciário, mesmo as perspectivas para a estabilidade de preços se tornam nebulosas, para dizer o mínimo.

O que temos, portanto, é um caso clássico de um carro à frente dos bois, que, sejamos sinceros, a esta altura do campeonato ainda são bezerros, ou melhor, óvulos esperando fertilização no útero materno.

Tendo dito isto, não há como deixar de notar a ironia: o presidente que ordenou a retirada do símbolo do Mercosul dos passaportes nacionais em nome de sua cruzada anti-globalista agora defende um processo que, para ser levado a cabo, requer a cessão de soberania num conjunto de áreas que vão do estabelecimento de políticas comerciais próprias à definição da taxa de juros de curto prazo, passando pela livre mobilidade de pessoas e profunda integração fiscal e financeira.

Se havia alguma dúvida acerca da completa ausência de reflexão sobre o tema, espero que este artigo ajude a dirimi-la.

Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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