Dilma está sendo punida por ter prescindido de valor fundamental da sociedade, diz analista

Em entrevista realizada pelo podcast da Rio Bravo, o professor Carlos Pereira traça um cenário para a relação entre o Legislativo e o Executivo num eventual governo Temer

Lara Rizério

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SÃO PAULO – O governo da presidente Dilma Rousseff parece por um fio, com a proximidade da votação de admissibilidade do processo de impeachment pelo Senado, que pode resultar em seu afastamento por 180 dias. Desta forma, o mercado fica de olho nas sinalizações de um governo Michel Temer, que tem grandes chances de assumir em meados de maio. E os desafios para o vice-presidente, se assumir a titularidade do cargo, são muitos. Um deles é a relação entre Legislativo e Executivo pós-votação do impeachment. Para falar sobre esse cenário, o podcast da Rio Bravo (ouça clicando aqui) entrevistou Carlos Pereira, cientista político e professor da Escola de Administração Pública e Empresas da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. 

Em um cenário partidário tão fragmentado, haverá espaço para coalizão? Para Pereira, um ambiente favorável à governabilidade só será estabelecido na medida em que houver o entendimento de que é urgente uma agenda mais ampla, algo próximo a um governo de salvação nacional. “Não vejo como o PMDB não ser capaz de gestar e gerenciar uma coalizão em cima de um governo que tem uma agenda de salvação nacional no futuro próximo”.

De acordo com o cientista político, em uma eventual administração Michel Temer, a discussão a respeito do combate à corrupção seguirá relevante. “Eu consigo identificar uma crença dominante na sociedade brasileira de intolerância à corrupção”, afirma o professor.

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Sobre o governo que parece estar no fim, Pereira destaca, entre outros erros do governo Dilma Rousseff: “… para além da agenda de inclusão, existe outra crença dominante que é equilíbrio macroeconômico. O brasileiro não abre mão de controle inflacionário. Esse é um dos motivos por que o governo Dilma está sendo punida, porque ela prescindiu desse valor fundamental da sociedade. Existe um novo conjunto de crenças, crenças essas relacionadas com o cansaço, a fadiga que a sociedade tem em relação à desvios, a corrupção”, afirma.

Confira a entrevista completa abaixo: 

Rio Bravo – Depois da votação da Câmara dos Deputados no dia 17 de abril, como ficam as relações entre o Legislativo e o Executivo? A ideia de coalizão permanece, desde que com o governo mais forte, ou as alianças serão construídas a partir de outros parâmetros?

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Carlos Pereira – Eu acredito que as coalizões permanecem, não tivemos mudanças institucionais. Pelo contrário, o impeachment é a afirmação das regras do jogo, das instituições. Logo, se não tem mudanças institucionais, os incentivos para a formação de coalizão permanecem. Nós temos um presidencialismo muito forte no Brasil, com presidente que tem muitos poderes constitucionais, mas que se elege sem maioria de representantes na Câmara e no Senado. Desde a redemocratização, só teve um caso em que o partido do presidente teve maioria de cadeiras sozinho, que foi o PMDB, em 1986. Desde então, em todas as eleições, para o Legislativo, o presidente é minoritário, com no máximo 20% de cadeiras no Legislativo. Com 20% de cadeiras no Legislativo é impossível governar. Então, necessariamente, para governar, o presidente tem que construir maiorias pós-eleitorais.

Embora a gente não vá ter uma eleição com o impeachment, o presidente Temer, para governar, tem que constituir maiorias, dado que o PMDB – embora seja o maior partido tanto na Câmara como no Senado – não tem cadeiras suficientes para governar sozinho. Então vai ter que ter uma coalizão. E o que eu observo é que deve ter uma coalizão ampla, uma coalizão fruto e natural de um governo de salvação nacional, muito similar ao que foi a coalizão do governo Itamar Franco depois do impeachment do ex-presidente Collor, onde praticamente todas as forças políticas, com exceção dos perdedores imediatos, que são os que estão se opondo ao impeachment, vão ficar fora dessa coalizão.

Ainda não está muito claro quais vão ser as estratégias, quais vão ser as escolhas do potencial presidente Temer na gerência dessa coalizão, se ele vai montar uma coalizão nos moldes de Fernando Henrique Cardoso, que foi uma coalizão com relativamente pequeno número de atores de partidos políticos que tinham cargo dentro do Ministério. Esses atores tinham uma grande homogeneidade de agenda – tinha uma agenda clara de privatização, de equilíbrio macroeconômico, de controle inflacionário. Quer dizer, essa agenda unificava esses atores e o governo Fernando Henrique também teve uma estratégia de compartilhamento de poderes e de recursos com esses atores que fizeram parte da coalizão, levando em consideração o peso político de cada um no Congresso.

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O governo Lula e o governo Dilma, ao contrário do governo Fernando Henrique, montaram coalizões mais amplas, muito heterogêneas, e não compartilharam poder nem recursos com os parceiros. Concentraram poder e recursos no próprio PT. Inclusive eu acredito que a origem de toda essa instabilidade, essa dificuldade, essa animosidade do PT com os parceiros decorre justamente dessa relação tumultuada, desconfiada, hierárquica que o PT desenvolveu com os parceiros. Como o PMDB tem sido um partido que eu chamo de legislador mediano, um partido que não tem disputado até então os cargos majoritários para o Executivo, mas tem optado desde 1994 compor com os partidos que disputam a presidência, o PMDB tem uma larga experiência na vida de coalizões. Eu acredito que o PMDB tem uma expertise quase que natural de montar coalizões. Então eu não vejo como o PMDB não ser capaz de gestar e gerenciar uma coalizão em cima de um governo que tem uma agenda de salvação nacional no futuro próximo.

RB – Mas essa fragmentação partidária, dado o retrato da Câmara dos Deputados e do Senado, não pode fragilizar essa estratégia de coalizão?

CP – Pode. De fato, um ambiente mais fragmentado gera mais dificuldade de montagem dessa coalizão. Entretanto, nos meus estudos sobre custo de governo, as três variáveis de gerência da coalizão, que é o tamanho, heterogeneidade e compartilhamento de poder e recursos, influenciam nesse custo, mas interessante que a fragmentação, não.

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Eu lembro que o caso do governo Lula, que tomou posse em 2003, a fragmentação partidária do início do governo Lula era praticamente a mesma da fragmentação partidária existente no final do governo FHC. Mas a despeito de você ter a mesma fragmentação partidária, você teve estratégias completamente distintas de como montar e gerenciar sua coalizão. Então a fragmentação eu concordo que é um dificultador. Ela pode gerar mais dificuldade na montagem e gerência, mas não ao ponto de inviabilizar a gestão dessa coalizão. Por dizer isso, eu não quero fazer apologia da fragmentação. A fragmentação está chegando a um nível proibitivo, em que vários estados no Brasil têm a fragmentação máxima. Principalmente os estados menores, do Norte. Há estados em que todos os oito representantes para a Câmara federal são de partidos diferentes. Essa é a fragmentação máxima, quer dizer, tem oito cadeiras e as oito são formadas por partidos (diferentes). Isso é excessivo.

Mas eu acredito que o sistema político brasileiro é muito jovem e ainda não chegou a um ponto de equilíbrio virtuoso. Acho que ele está em busca desse equilíbrio, acho que ele vai se autorregular no sentido de estabelecer regras que desincentivem a formação de mais partidos políticos e estabeleça critérios de desempenho ou mesmo aspectos relacionados à coligação proporcional, que é outro grande incentivador na criação de partidos, uma vez que mais partidos no jogo se beneficiam no processo dos restos de determinada votação. Então eu acredito que os políticos estão percebendo que estamos chegando em um nível proibitivo de fragmentação e esses próprios políticos vão retomar esse jogo no sentido de trazer a fragmentação para um nível aceitável dentro de um sistema presidencialista multipartidário.

RB – Uma parcela significativa da opinião pública ficou impressionada com a reação dos deputados ao longo da votação do processo de impeachment, a ponto de alguns inclusive tentarem desqualificar a participação desses mesmos deputados nesse processo. É possível que a comoção altere o nível do debate político ou mude a configuração da Câmara dos Deputados nas próximas eleições?

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CP – Não creio. A democracia não é o reino dos homens extraordinários. A democracia é o reino dos homens comuns. Se nós imaginarmos que os nossos representantes são extraordinários, estamos à beira da decepção, porque fatalmente iremos nos decepcionar com eles. É fundamental entender que os nossos representantes são homens comuns, que têm ambições como qualquer homem, que têm problemas, que têm dificuldades na sua formação, que não têm uma sofisticação.

Na realidade, a Câmara dos Deputados e o Senado são espelhos da sociedade. Então vai demorar ainda para essa democracia brasileira poder gerar parlamentos ou casas representativas com políticos que tenham melhor formação e mesmo nesse momento ela vai refletir esse homem comum, cheio de virtudes, mas também cheio de defeitos. O fundamental na democracia não é esperar esse homem extraordinário, mas que a democracia tenha instituições capazes de coibir este homem comum que chega na política e se torna nosso representante, quando ele se comporta de forma desviante e oportunista. Que existam instituições capazes de estabelecer limites para isso, estabelecer restrições ao desvio. Por isso eu estou relativamente otimista com a democracia brasileira, porque, em que pese termos um presidencialismo muito forte, muito fragmentado, nós temos instituições de controle muito robustas.

Nós temos um Judiciário muito independente, Ministério Público também muito ativo e muito independente, uma burocracia de altíssima qualidade, que teve acesso ao Ministério Público por concurso público, bem como no Judiciário, bem como na Polícia Federal, concursos esses dificílimos, muito competitivos pela meritocracia, e os políticos não têm nenhum controle sobre essas instituições. Então, a despeito das instituições legislativas enfrentarem dificuldades de estabelecer limites aos possíveis desvios desse homem comum representante, temos uma rede de instituições capazes de fazer essa tarefa. Nós temos tribunais de contas muito ativos, Polícia Federal, Ministério Público e um Judiciário muito fortes, e uma mídia muito investigativa. A combinação institucional de um presidente forte com fragmentação e essa rede de instituições capazes de dizer ‘não’ para políticos que porventura desviem é uma certeza que temos de que um presidente forte não significa necessariamente um cheque em branco.

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RB – A propósito dessa discussão, as instituições conseguem permanecer fortes com um escândalo de corrupção das proporções da Operação Lava-Jato, que alcança tantos atores políticos em diversas esferas de poder?

CP – Exatamente, elas se fortalecem com isso. Na realidade, eu identifico no Brasil um ciclo virtuoso dessas instituições de controle. Essas instituições perceberam que, ao alinharem seu comportamento com a preferência da maioria da população, elas alcançam reconhecimento e notoriedade. Há até bem pouco tempo, não sabíamos o nome de nenhum ministro da suprema corte brasileira. Hoje, sabemos o nome de todos. Até bem pouco tempo, sabíamos os nomes de todos os generais brasileiros, hoje não sabemos de nenhum. As instituições têm vida própria, elas criam seus próprios ethos, elas criam suas próprias rotinas, elas criam seus próprios procedimentos e se autofortalecem nesse sentido. Existe um ciclo virtuoso em que uma instituição percebe que se comportando mais alinhada com a preferência da maioria elas se fortalecem ainda mais.

Lembro que, durante o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal, o Instituto Datafolha fez uma pesquisa com os eleitores brasileiros perguntando o que eles achavam da culpabilidade dos envolvidos no escândalo, antes inclusive de começar o julgamento, e a grande maioria dos brasileiros, quase 80%, acreditava que os envolvidos eram culpados. Entretanto, uma parcela mínima desses 80% acreditavam que eles seriam punidos. Existia naquele momento uma crença de que só era punido judicialmente quem era pobre, negro, quem não tinha grandes posses. E essas expectativas foram alteradas com os resultados do julgamento do mensalão. O fato de impor punições judiciais para uma elite política ao tempo que essa elite política ainda está no poder é inusitado no mundo. Não há qualquer democracia no mundo, seja ela madura ou recente, em que a Justiça impôs perdas judiciais desta monta ao chefe da Casa Civil, ao presidente do partido do presidente no poder. Isso mostra o quanto essas instituições são fortes e o quanto elas tendem a se fortalecer ainda mais com essa nova expectativa, dado que o julgamento do mensalão contraiu a experiência negativa que essas instituições tinham e agora as pessoas esperam muito das instituições de controle.

Eu não acredito que vai haver uma nova reversão. Pelo contrário, vai haver uma afirmação ainda maior dessas instituições para estabelecer punições. Na verdade, já estamos vendo isso, na primeira instância, até o momento, mas já existem vários atores punidos, inclusive pessoas muito poderosas, o dono da maior empreiteira da América Latina, que foi condenado a 19 anos de reclusão, o que mostra que a despeito que toda essa crise política, econômica e moral, as instituições estão fazendo o seu papel nas suas rotinas, na sua normalidade, nos seus procedimentos, e é isso que as fortalece.

RB – Na sua avaliação, o tema corrupção seguirá relevante no debate político em uma eventual gestão Michel Temer?

CP – Eu consigo identificar uma crença dominante na sociedade brasileira de intolerância à corrupção. O brasileiro médio está fadigado de corrupção. Nós não conseguimos mais lidar com esse estado de coisas, com essa quantidade de desvios. E como eu acredito que as crenças importam na definição de instituições e no resultado dessas instituições, vai ser muito difícil para um potencial governo Temer desviar dessa crença dominante. Como foi, por exemplo, muito difícil os políticos desviarem da intolerância que tínhamos contra a hiperinflação antes do Plano Real. Como tem sido muito difícil os políticos desviarem de políticas de inclusão social.

Eu acredito que haja três crenças dominantes na sociedade brasileira. Uma que surgiu durante a transição para a democracia em função do modelo de desenvolvimento excludente que os militares implementaram no Brasil. Então, os políticos que surgiram a partir da transição democrática foram impactados por essa dívida social.

Lembra que uma das primeiras medidas do governo Sarney ainda foi a inclusão dos analfabetos no jogo político. Até então, os analfabetos não votavam. Foi no governo Sarney que foi implementado o Sistema Único de Saúde, o SUS. Foi no governo Sarney que foi implementada educação básica para todos. Foi no governo Sarney que foram implementadas previdência, aposentadorias, pensão para trabalhadores das cidades e rurais.

A sociedade brasileira vem sendo impactada por essa agenda de inclusão e desembocou com o governo Fernando Henrique, governo Lula e governo Dilma com essa agenda de inclusão. Mas para além dessa agenda de inclusão, existe outra crença dominante que é equilíbrio macroeconômico. O brasileiro não abre mão de controle inflacionário. Esse é um dos motivos por que o governo Dilma está sendo punido, porque ela prescindiu desse valor fundamental da sociedade. Existe um novo conjunto de crenças, crenças essas relacionadas com o cansaço, a fadiga que a sociedade tem em relação à desvios, a corrupção.  Então, por isso eu imagino que um dos legados desse processo de impeachment e da operação Lava Jato será o desenvolvimento de uma legislação cada vez mais robusta de combate à corrupção. Eu, por exemplo, chego a arriscar que a iniciativa popular do Ministério Público que teve mais de 2,4 milhões de assinaturas em cima das dez medidas anticorrupção será uma das bandeiras defendidas pelo potencial novo governo Temer, porque ele não terá outra escolha se quiser ter alguma legitimidade com essa sociedade que está ávida por uma sociedade menos corrupta.

RB – Um dos rescaldos da crise política é a descrença, por parte da opinião pública, dos atores políticos tradicionais. Diante desse cenário, como um novo governo poderia adquirir legitimidade junto à sociedade para governar o país?

CP – São duas questões. Primeiro é que essa perda de legitimidade dos políticos não é um fenômeno brasileiro. Se você fizer uma pesquisa de opinião com os eleitores americanos, os políticos americanos também não são bem vistos. Os partidos americanos também não são bem vistos. Se fizer uma pesquisa na França, vai ter resultados muito semelhantes, ou na Argentina. O problema não é do Brasil, é um problema da democracia. A democracia representativa enfrenta um refluxo de legitimidade e reconhecimento perante os eleitores. Então eu não vejo necessariamente um risco dessa perda de reconhecimento dos políticos e das suas instituições democráticas para sobrevivência e consolidação da democracia, afinal outras democracias também enfrentam o mesmo e não quebram. Para mim, democracia é um fenômeno fundamentalmente procedimental. É um fenômeno fundamentalmente relacionado a regras do jogo. Eu não estabeleço nenhum valor normativo à democracia.

Eu comungo da definição de democracia do cientista político Adam Przeworski, que foi meu orientador de Doutorado, que afirma que democracia é um sistema em que partidos perdem eleições. Democracia não é nada mais além disso, e para ele existem três condições para que isso aconteça. A primeira é que deve existir incerteza do resultado do jogo para todos os atores antes de o jogo acabar. Se alguém tiver certeza que um dos candidatos vai ser o vencedor, com certeza, isso não é democracia. A incerteza é uma condição necessária da democracia. Outra condição é a certeza de que o resultado do jogo vai ser respeitado. Independente de quem seja o vencedor, o perdedor vai se submeter ao resultado. E o terceiro componente necessário para que exista democracia é a repetição do jogo, porque a repetição do jogo em um calendário pré-estabelecido, constante, sem alterações, institucionalizado, é a garantia de esperança do perdedor de que ele pode ser o vencedor no futuro. Existindo essas três condições, a democracia tende a se perpetuar e a se estabilizar. Não é porque a democracia momentaneamente ou as instituições democráticas ou mesmo os políticos enfrentam uma perda de legitimidade, uma perda de representação, uma perda de popularidade, que a democracia está em risco.

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Lara Rizério

Editora de mercados do InfoMoney, cobre temas que vão desde o mercado de ações ao ambiente econômico nacional e internacional, além de ficar bem de olho nos desdobramentos políticos e em seus efeitos para os investidores.