Se a independência da Catalunha é improvável, por que o referendo foi tão importante?

Para internacionalista espanhola, não há saída visível no curto prazo e esta terça-feira será decisiva para o futuro da Espanha

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – A falta de diálogo começa a cobrar seu preço em uma Espanha cada vez mais polarizada. No último domingo, a despeito da pressão política e física do governo espanhol, das determinações constitucionais e da proibição da instância máxima do Judiciário do país, o governo da Catalunha realizou um plebiscito sobre a independência da região e informou que cerca de 90% dos 2,2 milhões de eleitores que foram às urnas votaram favoravelmente à proposta. O quórum do pleito corresponde a 41,5% do total de 5,3 milhões de eleitores e foi suficiente para o presidente regional catalão, Carles Puigdemont, dizer ao final da votação que a região “ganhou o direito de se tornar um Estado independente”.

A polícia espanhola tentou impedir a todo custo a realização do plebiscito, após a polícia autônoma catalã, chamada de Mossos d’Esquadra, se recusar a cumprir ordens do Judiciário. As cenas de violência, a mando do primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, percorreram o mundo e geraram um saldo de mais de 800 feridos. De um lado, os separatistas criticavam a truculência policial, enquanto de outro, a narrativa era a do cumprimento da lei e negação da realização do plebiscito. Do ponto de vista prático, o resultado da votação tem efeitos limitados no que diz respeito ao atingimento de sua última finalidade. Contudo, a escalada da polarização na Espanha faz crescer o nível de preocupação e traz um grau de incerteza inédito para a história recente do país.

Para a internacionalista espanhola Esther Solano, professora da Unifesp, trata-se de um episódio acumulativo, fruto de uma escalada no nível de tensão ao longo de dez anos. De um lado, os governos do PP (Partido Popular) e até mesmo do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) foram incapazes de compreender os novos contornos que ganhava a questão catalã e pecaram na falta de diálogo. De outro, observou-se a ascensão de líderes separatistas, que aos poucos foram tomando assentos de velhas oligarquias no parlamento até chegarem ao poder. O personagem mais emblemático de todo esse processo é o ex-presidente da Catalunha Artur Mas, que em novembro de 2014 comandou a realização de um referendo. O resultado foi o apoio à independência por mais de 80% dos eleitores que votaram, mas com quórum de menos da metade do total do eleitorado da região.

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“O que vimos foi uma ruptura total. Ontem [domingo] foi o simbolismo de que o diálogo fracassou”, afirmou Esther em entrevista ao InfoMoney. Na avaliação da professora, o diálogo teria sido possível em outras legislaturas, mas ambas as partes cometeram grandes equívocos. O novo episódio assistido por audiências no mundo inteiro era um desfecho inevitável para a radicalização do processo político local. Os movimentos independentistas avançaram no xadrez político e o governo não permitiu uma nova acomodação das peças, valendo-se de um dos pontos mais sensíveis da constituição país, que diz que a Espanha é indivisível.

“O processo se judicializou tanto e o governo de Madri se omitiu, que não houve saída. O Tribunal disse que o referendo não poderia ser feito, a polícia catalã não atendeu, e a outra polícia atendeu. Quando entrou, o excesso virou ordem”, disse a professora. “A situação de ontem estava fadada a acontecer. Como o diálogo foi desaproveitado, tensionou-se tanto dos dois lados que a coisa estava fadada a terminar com violência. Não havia saída, o problema foi ter chegado a esse ponto”.

Para completar o cenário de incertezas, na atual conjuntura sequer está claro se há maioria separatista entre o eleitorado catalão. A julgar pelas pesquisas realizadas e o próprio resultado do plebiscito de 2014, é possível que haja uma divisão equilibrada ou até mesmo uma pequena maioria favorável à manutenção da Catalunha como parte da Espanha. O interesse pela realização de um plebiscito, porém, conta com apoio maior.

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A Catalunha é conhecida como um dos grandes motores da economia espanhola, respondendo por 19% do PIB (Produto Interno Bruto) do país e 25% das exportações. Com a crise econômica, criou-se uma situação de maior permeabilidade ao sentimento de injustiça com relação à participação da região no orçamento e políticas do governo central. Tal avaliação somou-se a um movimento que já se observava de tomada das instituições por figuras separatistas. Esse processo é fruto, dentre uma gama de fatores, do sistema eleitoral construído ao final do franquismo. A ideia de garantir espaço às minorias e regiões silenciadas na ditadura e a permissividade à formação das mais diversas alianças partidárias acabaram gerando distorções ao sistema partidário, provocando um descompasso entre a ampla maioria de lideranças catalãs separatistas em posições de destaque da política e uma população bem mais dividida sobre o tema. Foi a vez do populismo entrar em cena.

Para Esther Solano, o último referendo ignorou o ordenamento jurídico espanhol, embora a violência adotada pelas forças de Rajoy sejam repudiáveis. Ela sustenta que só há uma saída para um referendo justo e que cumpra com o objetivo de apresentar a real disposição da população local sobre o delicado assunto. “Para que o processo fosse legal, teria que se alterar a Constituição. Afinal, o que estão tentando mudar é um princípio fundamental da Carta”, argumentou a professora. Um processo complexo como esse naturalmente demandaria uma votação majoritária no parlamento espanhol. “A partir daí, então, com um referendo legal, constitucional, verificar-se-ia o resultado”, explicou.

Embora se saiba que o governo espanhol jamais reconheceria a independência catalã, assim como a comunidade europeia — o silêncio dos principais líderes da região é uma eloquente manifestação de preocupação com uma nova onda separatista –, o que tornaria impossível a viabilidade da construção do Estado desejado pelos separatistas, a internacionalista chama atenção para a abertura de uma situação sem precedentes na história espanhola. Para ela, mais do que o último domingo, esta terça-feira será decisiva para o futuro do país. Isso porque existe a possibilidade de o presidente regional da Catalunha, Carles Puigdemont, fazer uma declaração unilateral de independência. Caso não tome tal iniciativa, poderá provocar uma grande frustração dos separatistas que se mobilizaram nos últimos dias.

Por outro lado, Esther diz que o estrago poderá ser muito maior caso a situação se confirme. “Seria uma situação sem precedentes. Ninguém sabe muito bem o que pode acontecer”, disse. Segundo ela, pela legislação espanhola, os líderes do governo catalão deveriam ser presos neste caso. Mas o próprio cumprimento de tal determinação tenderia a ser dramático e acirrar ainda mais os ânimos. A instabilidade política e insegurança jurídica ganharão peso maior na Espanha. Para a professora, o país neste momento está no limbo e não há saída à vista no curto prazo.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.