Argumentação de Cardozo sobre impeachment distorce a realidade, afirma professor da USP

O professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho entende ainda que, do ponto de vista ético, a Advocacia Geral da União não deveria defender a presidente da República

Lara Rizério

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SÃO PAULO – “Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”, “argumentos para a saída de Dilma Rousseff são fracos” de um lado. “Grave crime de responsabilidade” e “evidências flagrantes” do outro. Em meio a um cenário de fortes crises econômica e política, o ambiente de tensão e de polarização política ganhou um novo ingrediente com as discussões sobre o processo de impeachment da presidente por conta das pedaladas fiscais e dos créditos suplementares. Os ânimos ficaram cada vez mais acirrados entre os defensores da saída da presidente e aqueles que avaliam que o impeachment atenta contra a democracia nacional. 

Com base neste cenário, o Podcast Rio Bravo (confira o áudio aqui) entrevistou o jurista e professor emérito da FD-USP (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo) Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Para ele, o processo em questão não pode ser qualificado como golpe, por se “tratar de uma medida prevista na Constituição” e pela indicação de que os fatos que estão narrados na denúncia comprovam a ocorrência de crimes de responsabilidade. 

Segundo o professor, a alegação da AGU (Advocacia Geral da União), comandada por José Eduardo Cardozo, de que não houve tais crimes de responsabilidade pelo governo – uma vez que eles só poderiam ser qualificados desse modo “quando representam condutas graves e dolosas para o presidente da República” – distorce a realidade. “O crime de responsabilidade, diferentemente do crime comum, não é necessariamente uma infração grave às leis do país, mas é uma infração política ao cumprimento da Constituição. Tanto que, se fosse necessário que houvesse um crime comum para ocorrer o impeachment, seria desnecessário, porque a Constituição já prevê o processo do presidente da República para crimes comuns por parte do Supremo Tribunal Federal”, afirma o jurista.

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O professor entende ainda que, do ponto de vista ético, a Advocacia Geral da União não deveria defender a presidente da República. “Como diz o termo, a Advocacia deveria defender a União, e não defender os interesses de quem está eventualmente na presidência da República”. Para Manoel Ferreira, trata-se de uma distinção importante, mas que não tem sido levada em conta. 

Confira a entrevista abaixo:

Rio Bravo – No texto “Remédios Constitucionais para Bloqueios Críticos no Sistema Político”, o professor estabelece uma diferença entre o impeachment e o impedimento. Poderia explicar a diferença entre um e outro? 

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Manoel Gonçalves – O primeiro problema é um problema de linguagem ou de tradução, porque há duas figuras que estão previstas no Direito brasileiro e que, na verdade, estão presentes no direito estrangeiro, como no direito norte americano: o impeachment e o impedimento. Nós, por falta de um termo próprio, usamos impeachment pelo que seria um impedimento, se nós traduzíssemos. Ou explicando melhor, uma pessoa que esteja no exercício da Presidência da República pode ser afastada por dois caminhos diferentes, por duas razões genericamente diferentes. Uma é ela estar impedida de exercer o cargo por condições físicas ou conexas a isso.

Por exemplo, é o que nos EUA se discutiu em uma determinada oportunidade a respeito do presidente Garfield, que estaria muito doente e não poderia continuar atuando como presidente, aí é o caso de impedimento. No caso brasileiro, nós temos um caso também famoso de impedimento que depois degenerou em uma situação que pode ser considerada golpe ou revolução. O presidente Café Filho, que havia sucedido ao presidente Getúlio Vargas dado ao suicídio deste, estando doente, se licenciou do exercício da Presidência da República para tratamento de saúde. Foi então substituído temporariamente pelo presidente da Câmara dos Deputados, que era o Carlos Luz.

Evidentemente, como ele já havia sido vice, não tinha vice propriamente. Essa substituição ocorreu, mas em razão da atuação do Marechal Lott, esse impedimento se transformou no afastamento definitivo do presidente da República. O Direito Constitucional Brasileiro atual prevê as duas figuras em disposições diferentes da Constituição, inclusive porque o impedimento é decorrente de uma situação como o presidente está doente, o presidente foi sequestrado, o presidente desapareceu, e alguém precisa ocupar a Presidência mesmo que o presidente não tenha nenhuma culpa a responder por nada. O que nós chamamos de impeachment é o processo dos crimes de responsabilidade. Como é uma frase composta, é mais difícil você usar do que falar em impeachment usando um termo em Inglês.

Um impeachment é um processo de afastamento do presidente da República, e que pode ser de outras autoridades, em decorrência da ocorrência do que se chamam os crimes de responsabilidade. Essa é a diferença fundamental. É claro que, no primeiro caso, a deliberação é por maioria simples, que é simplesmente um reconhecimento de uma situação de fato. O impeachment já tem um procedimento complexo do que o primeiro ato que apenas se desenrolou no domingo na Câmara dos Deputados.

RB – A despeito de estar previsto na Constituição, há uma disputa a respeito da narrativa do processo de impeachment que está em curso. Isso porque o governo – a declaração da presidente Dilma Rousseff é bastante clara nesse sentido – sustenta que é vítima de golpe. Por que o processo de impeachment não pode ser qualificado como golpe? 

MG – Ele não pode ser qualificado como golpe pela razão simples de que se trata de uma medida que está prevista na Constituição e, consequentemente, o impeachment eventualmente será o cumprimento da Constituição. Não há ruptura da Constituição. A argumentação de que se trata de golpe é meramente política, porque, no fundo, é escorada na ideia de que não teria havido crime de responsabilidade que justificasse o impeachment. Os fatos que estão narrados na denúncia comprovam a ocorrência de crime de responsabilidade.

O segundo ponto é que essa decisão final cabe em um julgamento que ela vá sofrer, que vai ser mais adiante pelo Senado Federal, se este receber a denúncia da Câmara dos Deputados e desenvolver o processo e o julgamento dela.

RB – O argumento que sustenta o processo de impeachment se baseia no entendimento da existência de crime de responsabilidade. A defesa do governo alega que não houve tais crimes de responsabilidade uma vez que, segundo o advogado geral da União, José Eduardo Cardozo, “tais crimes só podem ser qualificados quando representam condutas graves e dolosas para o presidente da República”. 

MG – Essa argumentação distorce a realidade. O crime de responsabilidade, diferentemente do crime comum, não é necessariamente uma infração grave às leis do país, mas é uma infração política ao cumprimento da Constituição. Tanto que, se fosse necessário que houvesse um crime comum para ocorrer o impeachment, seria desnecessário, porque a Constituição já prevê o processo do presidente da República para crimes comuns por parte do Supremo Tribunal Federal. O crime de responsabilidade tem elementos em comum com o crime em geral, mas tem características próprias, porque a essência do crime de responsabilidade é o descumprimento da Constituição medido objetivamente. Com boa ou má intenção, isso importa pouco, porque é a preservação da Constituição que o crime de responsabilidade pretende.

Veja que o artigo da Constituição que fala do crime de responsabilidade o caracteriza como uma infração à Constituição, especialmente em tais e quais pontos, que depois são desenvolvidos pela lei dos crimes de responsabilidade, que é uma lei muito antiga, de 1979, que foi exatamente emendada e atualizada para prever determinadas infrações financeiras, como as ditas pedalas e atos quejandos.

RB – A Advocacia Geral da União (AGU) como representante judicial da União pode defender a presidente no processo de impeachment? 

MG – Eu diria que não há um impedimento escrito, mas eticamente eu acho que não poderia, porque a AGU, como diz o termo, é destinada a defender a União e não os interesses de quem está eventualmente na Presidência da República. Há uma distinção que ao meu ver é importante, mas que não tem sido levada em conta.

RB – Então nesse caso essa defesa técnica representa mais um interesse pessoal da presidente do que um interesse necessariamente da União? 

MG – Sim, porque ninguém está pretendendo que seja abolida a Presidência da República. O que está se pretendendo é que seja retirada a presidente da República, uma determinada pessoa. É um interesse dela e não da União que está em jogo.

RB – Um grupo de senadores aventou a possibilidade de convocação de novas eleições, independentemente do resultado do processo de impeachment. Tendo em vista que houve encaminhamento para o Senado desse processo, existe base jurídica para que haja outro destino do impeachment? 

MG – O problema se coloca, a meu ver, de outro jeito. A previsão de novas eleições na Constituição em vigor só pode existir se houver a vacância concomitante da presidência e da vice-presidência da República. Portanto, se a presidente Dilma renunciar e o vice-presidente Michel Temer renunciar, cabe eleição até o fim do ano. E cabe mesmo depois do fim do ano, só que aí a eleição é pelo Congresso Nacional e não mais uma eleição direta. Para modificar isso, seria necessária uma aprovação de uma emenda constitucional, e a aprovação da emenda constitucional não é uma coisa simples em face do que prescreve a Constituição.

Será necessária a aprovação por maioria qualificada na Câmara dos Deputados em duas votações e no Senado Federal em duas votações. É duvidoso, aliás, que isso se ajuste ao contexto, que não apareça como uma espécie de golpe para evitar as consequências do impeachment que é tratado como golpe.

RB – Uma vez que o impeachment avance tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, é possível que o processo seja contestado via STF? 

MG – Esse é um ponto muito importante, que eu não tenho visto ser examinado até agora. É claro que no sistema constitucional brasileiro, o Senado Federal tem a possibilidade de interferência no processo de impeachment na medida em que ele deve tutelar o devido processo legal, que é uma das disposições constitucionais, por exemplo tutelar o direito de defesa da presidente acusada. Agora, o Supremo Tribunal Federal não pode, a meu ver, alterar o resultado do julgamento que cabe ao Senado Federal.

Vejam que não é preciso ser jurista ou professor emérito aposentado (risos) para entender isso. A Constituição fala que cabe ao Senado Federal processar e julgar. Julgar significa apreciar se, em face das normas vigentes, foi ou não cometido um delito, que é o crime de responsabilidade. Essa é uma decisão substantiva que não cabe senão ao Senado Federal, e isso fica mais claro ainda para que se veja a situação inversa. A situação inversa seria amanhã o STF tomar uma decisão a respeito da questão qualquer e o Congresso Nacional decidir exatamente o contrário. Ele ditar uma sentença, um acórdão, dizendo que tal coisa não é aquilo que o Supremo entende. Vou absolver alguém que foi condenado por crime comum. A situação é a mesma. No fundo, é um problema na separação dos poderes. Há três poderes separados, mas harmônicos.

É claro que cada poder tem o seu núcleo essencial de competência. Então dir-se-á que o Judiciário tem um núcleo essencial de julgamento. Sim, mas não nesse caso, em que expressamente a Constituição retirou do Judiciário o julgamento. Retirou o julgamento não os crimes comuns, mas retirou do julgamento do Supremo Tribunal Federal, do poder Judiciário, os crimes de responsabilidade. Esse é o ponto que vai ferver, tenho certeza pela leitura dos jornais. Em 55, as coisas começaram regularmente e evoluíram irregularmente, porque eu ainda me lembro das coisas e o que eu vou dizer pode ser conferido em documentos. O presidente Café Filho, indicando que estava doente, pediu para ser substituído. Foi feita a substituição, mas como isso era suposto pelo Marechal Lott que era o esboço de um golpe contra a posse de Juscelino Kubitschek e seu vice, João Goulart, ele entendeu que isso era inaceitável e forçou o Congresso Nacional, que na verdade não precisa ser muito forçado porque a maioria dos deputados era do PSD/ PTB e estavam com medo de que não viesse a posse de Juscelino, dizendo que o presidente Carlos Luz estava a bordo de um navio na área brasileira, no Tamandaré, estava impedida no sentido fático de exercer a presidência da República. Aí havia expectativa de reações que não houve. O Carlos Luz renunciou à presidência e assumiu o vice-presidente do Senado, porque naquele tempo o presidente do Senado era o João Goulart. O vice-presidente do Senado era o Nereu Ramos. Dias depois, no dia 21 de novembro, o presidente Café Filho anunciou que ia voltar ao exercício porque ele estava curado.

E quando aconteceu isso, ele não conseguiu sair do apartamento porque ele ficou bloqueado em Copacabana. Não houve impeachment. Houve um impedimento que, causado pela intervenção militar, com o passar do tempo se legitimou na medida em que o Supremo não deu medida nenhuma em proteção dos direitos de Café Filho. E o que ocorreu? Terminou o mandato dele, Juscelino assumiu e passamos para outra página da história.

RB – O senhor acredita que o processo de impeachment pode suscitar, dada a temperatura política do momento, alguma tentativa de mudança na Constituição acerca da aplicação desse recurso? 

MG – Que pode provocar, eu não tenho a menor dúvida. As paixões estão desencadeadas e os juristas encontram frequentemente soluções muito estranhas para as coisas. Eu não acho que seja o momento oportuno quando há interesses graves em causa para se debater mudanças, embora alguém dirá que, ao contrário, quando as coisas estão pretas é que surge a oportunidade dessa discussão.

Voltando ao começo da palestra, o tema de Lisboa era exatamente os bloqueios institucionais como este que nós vemos numa situação em quem ninguém governa, porque nenhuma medida se toma nem pode ser tomada dada essa distensão política profunda entre a presidente da República e o Congresso Nacional. Agora, esses bloqueios podem ocorrer em outros sistemas de governo. Relativamente ocorre em Portugal hoje um bloqueio desse. Nas últimas eleições, o partido majoritário não tem maioria absoluta e foi afastado do gabinete. O gabinete português é de coalizão de esquerda entre dois partidos que não ganharam a eleição.

Como Portugal tem um sistema misto, presidencialista e parlamentarista, o presidente da República eleito é justamente do partido majoritário que não tem o gabinete. É um professor de Direito Constitucional e eu não sei como as coisas vão evoluir. Vai depender muito do juízo dos políticos portugueses.

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Lara Rizério

Editora de mercados do InfoMoney, cobre temas que vão desde o mercado de ações ao ambiente econômico nacional e internacional, além de ficar bem de olho nos desdobramentos políticos e em seus efeitos para os investidores.