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O Whatsapp, a desobediência civil, a tecnologia e a liberdade

Tão logo o bloqueio legal foi colocado em prática pelas operadoras de celular, os brasileiros usaram a própria tecnologia – como VPNs e o Telegram – para contornar as imposições estatais. Talvez a tecnologia possa, enfim, nos proteger do estado. Esse episódio é tão emblemático que merece uma reflexão por diferentes prismas. Deixarei a parte da tecnologia para o final. Antes, tratemos da desobediência civil maciça ocorrida em escala nacional na semana que passou.
Por  Fernando Ulrich
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Após a suspensão inesperada do Whatsapp, na semana passada, o presidente do Instituto Mises Brasil Hélio Beltrão afirmou:

“O pessoal entusiasmado com tecnologia e que acha que esta pode nos proteger do estado tomou uma ducha de água fria com o bloqueio do WhatsApp com uma mera canetada de uma juíza.

Esta foi uma ‘chamada para o despertar’. A tecnologia não pode nos proteger do estado, pois as pessoas (os dirigentes da tecnologia, os intermediários e provedores que possibilitam o serviço, e as contrapartes que utilizam o serviço) estão sempre localizadas em algum lugar e podem ser punidas pelo estado.”

Curiosamente, tão logo o bloqueio legal foi colocado em prática pelas operadoras de celular, os brasileiros usaram a própria tecnologia – como VPNs e o Telegram – para contornar as imposições estatais. Talvez a tecnologia possa, enfim, nos proteger do estado.

Esse episódio é tão emblemático que merece uma reflexão por diferentes prismas. Deixarei a parte da tecnologia para o final. Antes, tratemos da desobediência civil maciça ocorrida em escala nacional na semana que passou.

Depois do efetivo bloqueio do Whatsapp, muitos prontamente escolheram burlar a suspensão do aplicativo. Alguns cidadãos manifestaram sua desaprovação, considerando o ato, inclusive, uma contravenção, pois os burladores estavam infringindo a lei. Outros, mais brandos, afirmaram que se tratava meramente de mais um exemplo do rotineiro “jeitinho brasileiro”, aquela corrupção nossa do dia-a-dia.

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Confesso que essas colocações me fizeram refletir. Será que tem razão de fato? Ou estaríamos apenas cumprindo nosso dever moral – e seguindo a máxima de Martin Luther King Jr. – de rechaçar e desobedecer leis injustas? De acordo com alguns advogados, a decisão da juíza foi desproporcional, injusta e feriu os próprios princípios da Constituição Federal. Mais por sentimento e razão do que conhecimento jurídico, creio que a desobediência civil praticada por milhares (talvez milhões?) de brasileiros tenha sido plenamente justificada.

Contudo, essa distinção nem sempre é fácil. Como saber quando uma lei é injusta? Como discernir se um ato legislativo é correto? Qual deveria ser o critério? Especialmente nos dias de hoje, em que a lei tornou-se um artifício de uma minoria à espoliação coletiva, distinguir entre o que é coreto e justo do que é errado e injusto é uma tarefa inglória.

Para o famoso liberal clássico Frédéric Bastiat, as leis não podem ter outra finalidade, outra missão que não a de proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, uma vez que “A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis”. A lei, portanto, deve fazer imperar entre todos a justiça.

Sob esse critério, qualquer lei que agrida a vida e a propriedade de terceiros deveria ser considerada injusta e inaceitável. Se analisarmos, sob essa ótica, o arcabouço legal vigente, consideraríamos 99% de todo o emaranhado de legislações e regulações existente no Brasil um grave atentado à propriedade privada. Se cumprirmos todas as leis, não reinará a justiça, mas triunfará o esbulho da propriedade alheia. Cumpre-se a lei, mas não se faz justiça.

Então, se uma lei é injusta e atenta contra a nossa propriedade, deveríamos acatá-la? Estaria realmente justificada a desobediência civil diante de leis injustas? Seria legítimo criar mecanismos para praticar a desobediência civil? E se uma tecnologia nos fornecesse meios de contornar leis injustas, seria correto adotá-la? Por fim, e se, por meio da tecnologia, tornássemos completamente inócua a ameaça de violência estatal ao simplesmente impossibilitá-la na prática, blindando os indivíduos da agressão institucionalizada? Deveríamos fazer uso de tais tecnologias? Ou as julgaríamos ilegítimas?

As perguntas abundam e as respostas frequentemente adentram uma área cinzenta; o preto e o branco não são facilmente discerníveis. A era digital tem nos submetido à reflexão ao quebrar uma série de paradigmas antes inimagináveis.

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Por exemplo, devido à evolução tecnológica, a liberdade de expressão hoje não mais depende da concessão estatal, assim como a liberdade e privacidade de comunicação. Já temos tecnologia plenamente funcional para preservar a privacidade de comunicação entre duas partes, independentemente de localização geográfica, vedando a qualquer agente – inclusive aos estados – o acesso não consentido. Se algum estado, sob qualquer justificativa, decretar que a utilização dessa tecnologia é ilícita, tal lei seria injusta ou seria o meio de comunicação realmente ilegítimo?

A criptografia é um exemplo de evolução tecnológica que, aliada à era digital da internet, tem um potencial extraordinário. Não surpreende, portanto, as recorrentes tentativas de governos de banir o uso da “criptografia inquebrável” pelas empresas de tecnologia como o Google e a Apple – sob o pretexto de combate ao terrorismo, governos querem ter a possibilidade de exigir das empresas que provêm serviços de comunicação acesso às trocas de mensagens privadas de determinados usuários.

O fato é que a tecnologia pode proteger os indivíduos não apenas de governos autoritários ou de leis injustas, mas também de qualquer ator mal intencionado. A visão de que a tecnologia é incapaz de resguardar as liberdades individuais advém do puro desconhecimento da potencialidade da criptografia moderna e das redes descentralizadas (ou P2P, peer-to-peer).

Poucos libertários têm consciência do poder dessas tecnologias. Estes, em sua vasta maioria, costumam se especializar em economia, direito, filosofia e política; mas pouquíssimos dominam a ciência da computação e da criptografia. E ao não terem plena compreensão desse campo do conhecimento científico, acabam concedendo que, perante o estado, somos todos impotentes.

Mas isso não é verdade. A própria realidade é prova disso.

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Hoje temos pelos menos dois exemplos de tecnologias em ampla utilização no mundo, contra as quais o estado nada pode fazer: o BitTorrent e o Bitcoin. Ambas as tecnologias são resultado de décadas de pesquisa em ciência da computação e criptografia. Ambas são adaptações e evoluções de modelos de rede e segurança ultrapassados, os quais tinham como vulnerabilidade a centralização – justamente o tendão de Aquiles que permitiu à juíza lograr a efetiva proibição do Whatsapp.

Ao fim dos anos 1990, o Napster era um dos grandes propulsores das redes P2P. Mas seu sistema não prescindia de um servidor central e por isso sucumbiu. Redes como a do Napster possuem uma debilidade chamada “ponto único de falha” (single point of failure). A sofisticação das redes efetivamente descentralizadas está precisamente na ausência de um “ponto único de falha”.

Os protocolos do BitTorrent e do Bitcoin adotam justamente esse modelo de rede. Não há servidores, não há um ponto central, não há uma empresa encarregada do funcionamento do protocolo. Cada cliente se conecta diretamente a outros clientes. Até hoje o BitTorrent não foi derrubado simplesmente porque não há o que derrubar. Não há quem cercear porque não há ninguém para ser intimado ou intimidado. Tampouco tiveram êxito as tentativas de censurar a rede do Bitcoin. Resiliência é a palavra chave desse modelo de redes.

Mas não seria possível alcançar algum intermediário para bloquear essas tecnologias? Devido ao uso engenhoso da criptografia, a resposta é não, não é factível localizar nenhum dirigente de empresa – até mesmo porque não há uma –, nem intermediários, contrapartes ou provedores de internet porque é virtualmente impossível obstruir o tráfego desses dados. A criptografia se encarrega também de preservar a privacidade dos usuários, inviabilizando a identificação dos participantes.

A não ser que derrubem toda a internet, bloquear essas tecnologias é um feito quase irrealizável. A desintermediação dos serviços, a remoção de diversos terceiros e intermediários é uma proeza cuja realização foi somente possível depois da invenção da internet. É uma força quase imparável.

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E o próprio estado tem ajudado nesse processo evolutivo. De que forma? A Terceira Lei de Newton explica: para cada ação, há uma reação de mesma intensidade em sentido contrário. Quando governos proibiram o Napster, os usuários migraram para o Kazaa. Quando este teve problemas, surgiu o LimeWire, baseado na rede descentralizada Gnutella. Em paralelo, estava sendo criado o protocolo BitTorrent, o qual é, hoje em dia, usado por diversos aplicativos para compartilhamento de tudo que é tipo de arquivos digitais – não apenas conteúdo “pirata”.

Como alternativa ao sistema monetário centralmente planejado que hoje vigora, Satoshi Nakamoto inventou o Bitcoin, uma moeda digital baseada em um protocolo com software de código-fonte aberto.

E quando decidirem controlar e amordaçar a internet, uma consequência – real e presente –não intencionada da famigerada lei do Marco Civil da Internet, o que faremos? A internet em si já é relativamente descentralizada, mas há iniciativas para aprofundar ainda mais essa descentralização, como é o caso da MaidSafe.

Muitos libertários internalizam a visão pessimista de mundo em que a liberdade é cada vez mais solapada e o estado avança inabalável. E há pouco o que podemos fazer senão alertar e educar os indivíduos.

Francamente, não subscrevo a essa visão. Não sou alheio aos males feitos pelo estado todos os dias, longe disso. Mas confio na inata e infinita criatividade do ser humano para encontrar soluções aos grandes problemas do nosso mundo, e por isso sou um eterno otimista.

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Quando lograrem a efetiva proibição do Uber – o que não descarto –, surgirá o SuperUber, um aplicativo totalmente descentralizado, de código-fonte aberto, autorregulado e sem nenhuma empresa por trás. Sem intermediários. A tecnologia, que nada mais é do que a aplicação prática do conhecimento e da criatividade humana, prevalecerá.

Tudo isso nos leva a uma constatação importante: as façanhas em prol da liberdade que os geeks estão conseguindo realizar – por mero divertimento, talento ou ofício – ofuscam décadas de ativismo dos libertários.

O que nos remete a uma lição igualmente importante: a defesa da liberdade deve ser uma luta tão teórica e intelectual quanto prática. Até porque a efetiva prática da liberdade, a experiência de liberdade, catalisa e reforça o próprio entendimento teórico e intelectual do porquê de sua defesa.

Nem todo mundo é a favor da livre concorrência, mas quase todos defendem o direito de usar o Uber com unhas e dentes. Poucos são contra as agências reguladoras, mas certamente muitos ficariam indignados se a ANATEL ordenasse as empresas de telecomunicações a bloquear o Whatsapp. O Banco Central é tido pela opinião pública como essencial, um sinal de modernidade; mas, no fim do dia, o trabalhador vai escolher a moeda que mais bem manter o seu poder de compra.

A tecnologia pode não apenas nos proteger do estado, como pode também tornar mais evidente o quão injustas são certas leis, e isso, por si só, já é um grande ensinamento. Não tenho a pretensão de saber todas as respostas às perguntas feitas acima. Tenho mais dúvidas que certezas. Mas tenho uma convicção: a de que a tecnologia está nos fazendo repensar o próprio papel do estado e isso é um passo fundamental para o triunfo da liberdade.

Por fim, deixo mais uma reflexão: se a tecnologia pode tornar a agressão institucionalizada impossível, isso demonstra que a violência estatal é de fato ilegítima? Ou será que deveríamos nos submeter voluntariamente a ela?

Alguns anarcocapitalistas acreditam que o fim do estado se dará apenas quando acabar o seu apoio moral pelos indivíduos. Mas isso requer um esforço descomunal de convencimento teórico e intelectual da sociedade como um todo. A tecnologia pode ajudar – e talvez abreviar – nesse processo, demonstrando na prática a evidente ilegitimidade da violência estatal.

Fernando Ulrich Fernando Ulrich é Analista-chefe da XDEX, mestre em Economia pela URJC de Madri, com passagem por multinacionais, como o grupo ThyssenKrupp, e instituições financeiras, como o Banco Indusval & Partners. É autor do livro “Bitcoin – a Moeda na Era Digital” e Conselheiro do Instituto Mises Brasil

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