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Como o advento do Bitcoin pode influenciar o pensamento dos Bancos Centrais

David Andolfatto, vice-presidente do Federal Reserve de Saint Louis, é um dos raros casos de um banqueiro central que conhece e aprecia a invenção de Satoshi Nakamoto. Em março de 2014, para uma plateia seleta em um evento fechado do Fed, Andolfatto fez uma apresentação bastante consistente sobre o potencial e os riscos da tecnologia do Bitcoin. Vale a pena conferir. Mas o que me traz aqui desta vez é um artigo recente de sua autoria, publicado no seu blog pessoal e intitulado “Bitcoin and Central Banking”. Nele, Andolfatto assemelha o bitcoin ao dinheiro físico, papel-moeda (cash), enumerando uma série de características que ambas as tecnologias de pagamento compartilham. “O Bitcoin é o mais próximo que temos de um cash digital”, afirma o vice-presidente do Fed. Ambos são ativos ao portador (bearer instrument) e são transacionados na forma P2P (peer-to-peer), conclui o autor. De fato, como o próprio criador o definiu no paper original, “Bitcoin é um sistema de dinheiro eletrônico P2P”.
Por  Fernando Ulrich
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

David Andolfatto, vice-presidente do Federal Reserve de Saint Louis, é um dos raros casos de um banqueiro central que conhece e aprecia a invenção de Satoshi Nakamoto. Em março de 2014, para uma plateia seleta em um evento fechado do Fed, Andolfatto fez uma apresentação bastante consistente sobre o potencial e os riscos da tecnologia do Bitcoin. Vale a pena conferir.

Mas o que me traz aqui desta vez é um artigo recente de sua autoria, publicado no seu blog pessoal e intitulado “Bitcoin and Central Banking. Nele, Andolfatto assemelha o bitcoin ao dinheiro físico, papel-moeda (cash), enumerando uma série de características que ambas as tecnologias de pagamento compartilham.

“O Bitcoin é o mais próximo que temos de um cash digital”, afirma o vice-presidente do Fed. Ambos são ativos ao portador (bearer instrument) e são transacionados na forma P2P (peer-to-peer), conclui o autor. De fato, como o próprio criador o definiu no paper original, “Bitcoin é um sistema de dinheiro eletrônico P2P”.

Assumindo uma maior adoção da moeda digital e um uso massificado, Andolfatto pergunta-se de que forma o advento do Bitcoin pode influenciar a prática dos Bancos Centrais. São as suas respostas a essa indagação o objeto deste post.

“Primeiro”, escreve Andolfatto, “a ameaça do Bitcoin coloca restrições à política monetária. Em jurisdições que financiam vastas somas de gasto governamental com o imposto inflacionário, essa restrição pode ser uma amarração real”.

Inegavelmente, o autor tem razão. No caso hipotético de os usuários de moeda demandarem majoritariamente, ou apenas significativamente, o bitcoin, um Banco Central enfrentaria problemas para impor suas políticas monetária no território em questão. Mas é importante notar que o imposto inflacionário é um fenômeno generalizado, não é restrito a países com notória opressão financeira, como Argentina e Venezuela.

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Qualquer nação em que há a presença de um Banco Central está sendo submetida ao imposto inflacionário. O que varia apenas é o grau, é a intensidade, mas a essência é idêntica em praticamente todos os países do planeta. O tributo mascarado de inflação é o paradigma do sistema monetário atual, inclusive no país do Federal Reserve de Andolfatto.

O seu segundo ponto, contudo, é o que merece maior consideração: ele diz respeito à forma como o próprio sistema bancário tradicional opera e o que poderia ocorrer se aplicado ao bitcoin. De acordo com o autor:

“À medida que o Bitcoin se torne um instrumento de pagamento significante, ele poderia abrir a porta à instabilidade financeira. A experiência demonstra o desejo do setor privado pela transformação de maturidade ou, mais generalizadamente, a propensão a atuar sobre os incentivos que fazem o financiamento de ativos ilíquidos com dívida de curto prazo uma estrutura de balanço preferida. Os mesmos incentivos estariam supostamente presentes em uma economia baseada no Bitcoin. Em princípio, passivos do tipo ‘à vista’ deveriam ser negociados com um prêmio de risco. Mas na prática, isso pode não ocorrer. Especialmente em tempos de complacência econômica, esses passivos são provavelmente vistos como próximos de substitutos perfeitos em termos de suas propriedades de moeda, da mesma forma que o dinheiro bancário e o papel-moeda hoje. A pergunta é o que acontece se e quando há uma “corrida bancária” ou uma “crise de rolagem” em um sistema assim? A situação é exacerbada se o bitcoin não é uma unidade de conta. Uma vez que seguros de depósitos federais podem não estar disponíveis e já que nenhum prestamista de última instância pode emitir BTC, um clássico pânico bancário é possível. Bancos centrais e autoridades fiscais teriam que pensar sobre o que fazer em tais circunstâncias. Uma solução pode ser impor restrições bancárias rígidas para bancos (ou outras entidades) envolvidos em transformação de maturidade denominadas em bitcoin.”

Por “transformação de maturidade”, Andolfatto refere-se ao fenômeno de emitir dívida de curto prazo para financiar ativos de longo prazo, isto é, dívida de maturação curta e líquida para financiar ativos que maturam em um período mais alongado, ou seja, ilíquidos. Todo o processo de expansão do crédito é um perfeito exemplo de transformação de maturidade, pois bancos criam depósitos à vista contra empréstimos – criam uma obrigação à vista para financiar um ativo de longo prazo. Essa é a essência do sistema bancário vigente.

Reservas fracionárias (RF) seria a outra forma de chamar “transformação de maturidade”. O processo de manter em reserva apenas uma fração dos depósitos recebidos pela clientela é o paradigma da prática bancária há séculos. Quando bancos “transforam maturidade” ou operam sob o sistema de reservas fracionárias, eles efetivamente criam moeda sem lastro algum – no passado o lastro era o ouro físico, hoje são as cédulas emitidas pelo Banco Central.

Qualquer empresa pode “transformar maturidade”, adotando uma estrutura de balanço com passivos de curto vencimento para bancar ativos ilíquidos. O risco dessa estrutura, porém, é gigantesco, e basta algum credor não aceitar rolar seu empréstimo para forçar uma empresa à bancarrota. Por isso, as empresas de quase todos os setores costumam não violar a regra de ouro: ativos e passivos não devem ter datas de maturidade descasadas.

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Mas quando se trata do sistema bancário, a transformação de maturidade não apenas é o modus operandi – com o aval do Banco Central – como também adquire uma magnitude descomunal, em que a quebra de uma instituição financeira pode levar a uma crise sistêmica, arrastando para o precipício uma boa parte dos concorrentes – um fenômeno que dificilmente ocorre em outros setores da economia.

Desse processo se origina a recorrente e inerente instabilidade financeira do sistema monetário atual, e por isso a necessidade de um Banco Central, um prestamista de última instância pronto para socorrer instituições em apuros. Para muitos, as RF são uma espécie de fraude – opinião que subscrevo – que sobrevive e perdura graças aos privilégios concedidos pelos governos à prática bancária. Creditar a existência dessa atividade ao mero “desejo do setor privado” é uma grande simplificação do vice-presidente do Fed de Saint Louis. A situação é bem mais complexa, e a vontade do consumidor é mais uma consequência do que um fator causante da transformação de maturidade.

Feito esse preâmbulo, o risco de que esse modelo bancário poderia se aplicar em sistema financeiro baseado em bitcoin é muito menor, pois há diferenças fundamentais entre um banco depositário de moeda fiduciária e outro de bitcoin.

A primeira delas é que, ao contrário do sistema vigente, com o bitcoin você pode ser o seu próprio banco. Você não depende de um terceiro para custodiar e transferir seus bitcoins a outrem. Usando os jargões técnicos, o bitcoin já oferece ao usuário custos de transação bastante reduzidos, fazendo com que o aparecimento de substitutos de dinheiro (ex.: depósitos em uma instituição terceira) seja muito improvável.

Mas isso não quer dizer que seja impossível. Por exemplo, há empresas que fornecem facilidades adicionais – como cartão de débito com bandeira Mastercard/VISA – para clientes que mantiverem seus bitcoins custodiados em suas plataformas. Nesses casos, quando o proprietário cede o controle dos seus bitcoins a um terceiro, a possibilidade de aparecer a prática de RF, ou transformação de maturidade, está presente.

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O grande mitigador desse arranjo é que o usuário tem sempre a opção de sacar os bitcoins do terceiro, transferindo-o a uma carteira que somente ele controla e sem ser privado de todas as funcionalidades que a rede provê. A mesma situação no sistema bancário tradicional não é factível: se você sacar em espécie, não mais poderá usufruir de toda a infraestrutura de pagamentos dos bancos. Fazer uso de um intermediário em um sistema baseado em bitcoin é uma alternativa; no sistema de moeda fiduciária, praticamente uma obrigatoriedade.

Portanto, a preocupação de Andolfatto é infundada, pois o risco de uma “corrida bancária” ou uma “crise de rolagem” se reduz substancialmente em uma economia baseada no bitcoin. Os incentivos às RF no sistema bancário tradicional não estão presentes no sistema bitcoin com a mesma intensidade, tornando este muito menos suscetível a um pânico bancário.

Ademais, a inexistência de prestamista de última instância no sistema bitcoin é, na verdade, uma vantagem, e não uma fraqueza, como faz parecer o autor. O dilema da prática bancária de RF é exacerbado pela presença de um Banco Central e do seu socorro sempre implícito, o qual contribui sobremaneira ao notório risco moral. A impossibilidade de emissão de bitcoin por qualquer entidade introduz um elemento disciplinador no mercado: sejam prudentes nos seus negócios, porque não há quem possa resgatá-los.

Contudo, vale notar que, devido aos possíveis problemas de escalabilidade, a situação atual do sistema bitcoin pode ser alterada no futuro. Caso um volume expressivo de transações passe a ocorrer fora do blockchain (off blockchain transactions), em sidechains paralelos, por exemplo, a dinâmica explicada acima pode acabar estando mais sujeita ao aparecimento de RF. Quanto a esse risco, só podemos especular neste momento.

Para encerrar este tópico, um último comentário. O ponto curioso deste artigo é constatar que o vice-presidente do Fed implicitamente admite que a transformação de maturidade é responsável ou pelo menos um dos grandes causadores da instabilidade financeira, e, como solução, advoga restrições bancárias mais rígidas (ex.: maiores requerimentos de capital). Quem sabe, se essas provisões fossem aplicadas ao sistema bancário atual, não estaríamos tão suscetíveis às crises financeiras e poderíamos prescindir de um Banco Central?

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Mas, prosseguindo no artigo, à parte das questões acima, o vice-presidente do Fed de St. Louis vai além, e recomenda algo inusitado: que o Banco Central estenda aos usuários da moeda corrente do país serviços de dinheiro digital, ou até mesmo emitir alguma criptomoeda. Em vez de usarem cash, poderiam usar contas com o dólar digital depositado no próprio Fed, por exemplo – hoje somente os bancos são autorizados a manter contas na autoridade monetária. Em miúdos, a ideia consiste em “digitalizar” a moeda física hoje em circulação.

Como bem antecipado pelo autor, o problema desse arranjo é que os detentores de moeda perderiam os benefícios que o papel-moeda hoje propicia (ex.: privacidade e controle absoluto), ficando sujeitos à política monetária prejudicial, como a imposição de juros negativos, o sonho dourado de todo banqueiro central – essa proposta anda em paralelo à medida radical de abolição do dinheiro físico pelos Bancos Centrais.

Alternativamente, sugere Andolfatto, a autoridade monetária poderia emitir sua própria criptomoeda (Fedcoin), inspirada no algoritmo de consenso do Bitcoin. Embora o autor espere que nada disso ocorra no futuro, é preciso frisar o seguinte: não tem sentido um Banco Central emitir uma criptomoeda baseada em um consenso distribuído.

Conforme escrevi algures (aqui e aqui), a moeda é apolítica ou está submetida aos ditames de uma autoridade monetária. Não há híbrido possível. Se o Federal Reserve lançar a Fedcoin, das duas, uma: ela será mais uma criptomoeda qualquer – um protocolo com código-fonte aberto, não controlada por ninguém individualmente – ou será apenas mais uma forma de o Fed oferecer ao mercado sua moeda de curso forçado, com uma roupagem mais moderna e totalmente digital – a emissão e o controle estariam em sua plenitude sempre nas mãos do próprio Fed. Se ocorrer o primeiro, a Fedcoin estará sujeita às forças de mercado e terá que concorrer com o Bitcoin. Caso contrário, a Fedcoin seria apenas a forma de denominar o dólar puramente digital emitido pelo Federal Reserve ao grande público.

Portanto, se um Banco Central vier a emitir uma moeda digital nesses moldes, entendamos que ela em nada se assemelharia às criptomoedas como o Bitcoin. Aquela seria centralizada e imposta à sociedade; estas, descentralizadas, baseadas em consenso distribuído e totalmente voluntárias.

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Reconheço que Andolfatto levanta pontos instigantes – e é importantíssimo um banqueiro central da sua estatura lidar com o assunto de forma séria –, mas, ao fim e ao cabo, sua teoria econômica o impede de admirar o Bitcoin a pleno, sobretudo quando enxerga defeito onde há virtude.

Há inúmeras respostas à pergunta “de que forma o advento do Bitcoin pode influenciar o pensamento dos Bancos Centrais?”. Mas mais do que encontrar uma resposta, o importante aqui é o simples fato de essa pergunta ser levantada. Isso, sim, já é uma verdadeira façanha, e é esse um dos grandes méritos da invenção de Satoshi Nakamoto.

Economistas, tecnocratas e banqueiros centrais não podem mais ignorar o Bitcoin. Pelo contrário, a dura imposição da realidade está forçando-os a estudar a tecnologia e a imaginar de que forma a criptomoeda pode influenciar a própria abordagem das autoridades monetárias. Não há nada mais salutar que a concorrência.

O que muitos economistas defensores do padrão-ouro não conseguiram alcançar com argumentos, o Bitcoin está conquistando na prática, por meio de sua simples existência. E isso é fantástico.

Fernando Ulrich Fernando Ulrich é Analista-chefe da XDEX, mestre em Economia pela URJC de Madri, com passagem por multinacionais, como o grupo ThyssenKrupp, e instituições financeiras, como o Banco Indusval & Partners. É autor do livro “Bitcoin – a Moeda na Era Digital” e Conselheiro do Instituto Mises Brasil

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